quinta-feira, outubro 12, 2006

Memórias de Borboleta VI

Aqui estão meus apuros e paro por aqui, eu espero. Minhas letras são constantemente atualizadas no Transmimentos de PensAções. Obrigada pela visita!


(A franja ainda cortada pela metade, uma leve depressão acima das sobrancelhas. Esta é minha foto da vitória)
Existem aqui alguns erros de português, mas deixei que ficassem para guardar o meu momento. Este texto foi escrito durante a minha recuperação física e psicológica.

Os Apuros de Claudinha Curto Circuito - Parte I
Era setembro, 2001, no terceiro dia. Havia rumores na escola de que fariam uma festa surpresa no dia do meu aniversário. Na farmácia, muito serviço, como sempre. Terminei tudo e me preparei para minha caminhada diária. O sol, escaldante, das 16:00h, não foi capaz de me fazer desistir. Fui à luta, me protegi como pude. Cheguei bem. Não sentia nada. Não estava doente...À noite, fui me deitar mais cedo. Estava preocupada com meu filho que havia se sentido mal. Como não me sentia calma, resolvi tomar uma "arma secreta" que minha médica receitou, para relaxar e tentar dormir. Às 21:30h, um telefonema, avisando que os exames do garoto teriam que ser repetidos, havia alteração, mas nada de ruim. O nível de triglicérides muito alto, o que era de se esperar de quem comia carboidratos sem parar... Mas eu não acreditei que seria isto, entrei em pânico, minha pressão arterial subiu demais e aí... Deu tilt... Curto circuito mesmo!!!Tive uma convulsão e muito enjôo. Depois, minha nuca começou a queimar e parecia que minha cabeça iria subir pelos ares, como um foguete. Como ela não desgrudava, a dor era insuportável. Gritava, desmaiava. Só sei disto por relatos de quem viu, porque eu não me lembro nem da dor (Ufa!!). Ao sentir mal, fui tomar um banho e chamei o Szafir que estava na cozinha. A partir da fase da nuca queimar, eu não me lembro de mais nada.O Szafir chamou o médico.Ana dormia, não viu nada, tinha três anos. Du, 10 anos, dormia na casa da avó e também não viu nada, ainda bem...A rigidez da nuca e a confusão mental levaram o Dr. Eduardo a me internar na Santa Casa, mas como não melhorava, ele diagnosticou AVC hemorrágico e me mandou urgentemente para Pouso Alegre. Fui de ambulância, com minha mãe, que a tudo suportou bravamente. Meu Szafir atrás de carro, minha vida toda por um fio. O aviso do médico: É grave, muito grave. Não sabemos se ela sobreviverá à viagem, ou ao AVC... Não há muitas chances de vida...
Os Apuros de Claudinha Curto Circuito - Parte II-
O Primeiro Milagre -"Vida... Louca vida... Vida breve...
"Dois dias, ora consciente, ora inconsciente, mas eu não tenho lembranças. Vendo pelo lado bom, jamais completei 37 anos... Recebi a todos, conversei, mas não me lembro.Tomografia, diagnóstico: Aneurisma cerebral hemorrágico, na carótida. Presente de aniversário.Tenho pouquíssimas lembranças depois destes dias. Totalmente sem noção das horas. Sei que o tempo passava, pela troca de acompanhantes, pelas pessoas que iam e vinham, no que parecia um piscar de olhos meus...Acordava num intervalo de muitas injeções e comprimidos. Um banho, um almoço, um café. Que dia seria???Meu Szafir, tão alto, dormindo encolhido perto de mim, sem nenhum conforto. Meus cunhados, João e Wilson me surpreenderam. Nunca imaginaria que seriam companhias tão boas, tão necessárias. Todos, cunhadas, cunhados, médicos da família, revezando, num esquema, numa cidade 100km distante...E as crianças? "Estão com sua mãe". Sosseguei. Entreguei meus pontos e meus filhos. Estariam bem.Não podia levantar a cabeça, as pernas enfaixadas para evitar trombose, um calor insuportável...No dia 11 de setembro, finalmente, minhas veias estavam em condições de um exame, tipo cateterismo , para estudar o local do Acidente Vascular Cerebral (AVC).Enquanto as "Torres Gêmeas" desabavam em New York, eu estava correndo risco de vida. Para quem não sabe, quando se tem um AVC, as veias entram em espasmo e tudo pode se perder...Os médicos, enquanto realizavam o exame, comentavam o atentado. Eu ouvia trechos e estava assimilando de maneira confusa. Em Nova York? Então, eu sofri um acidente em NY? Como? Como vim parar aqui? O que aconteceu? Onde consegui grana e tempo para viajar? Ninguém me ouvia e ninguém me respondia.O que eles não imaginavam, aconteceu. Meu sofrido e cansado batedor deu sinais de perigo. Eu, como se assistisse ao lado da mesa, via todos correndo e um deles me machucou muito o peito, outro ajudava, enquanto uma enfermeira pressionava alternadamente o meu peito e a minha virilha. Nesta última, para estancar o sangue da incisão para o exame. Não recobrava os sentidos. E, devido aos anticoagulantes tomados, também não estancava o sangue.Até que pensei: Mas, e as crianças? Se estou aqui, onde estão as crianças??? Estão neste mesmo acidente? Preciso achá-las! Entrei em pânico!Imediatamente, senti uma violenta sensação de queda e acordei de sobressalto. Abri os olhos e vi os dois médicos que me machucavam se cumprimentarem e rirem para mim.Fui para o quarto. Depois de alguns dias, tive consciência do atentado de 11 de setembro, mas não da sua gravidade.Neste dia, Beto Guedes e amigos gravavam um cd num show especial (em homenagem aos seus 50 anos), e dedicaram-no às vítimas do atentado (Szafir me deu o cd de presente, quando fez um ano)... Ainda me lembro quando o Beto cantou na Praça Tiradentes, em 1980, para todos os aniversariantes dali, no dia do meu aniversário, "quando entrar setembro e a boa nova..."Começou então a espera pela decisão. Seria operada, mas quando?Já estava no hospital há 10 dias, e nenhuma chance de voltar para casa. Só a certeza de que havia sobrevivido ao AVC, sem seqüelas. O que por si só já é um milagre...A saudade de casa, a vontade de ver os filhos... Mesmo meu Szafir traficando um celular (puxa vida, até os bandidos fazem isto, porque não eu?), e eu falando escondido com eles, não dava para matar as saudades. Eu não podia falar muito, a emoção poderia detonar a bomba que eu trazia comigo, desde que nasci...Para Ana, eu estava fazendo um curso. Ela custou a me perdoar por eu ter saído sem dizer tchau. O Du, mais velho, compreendia tudo, sofria calado. Eu, mais ainda, aproveitava cada chance de falar com eles, pois sempre achava que poderia ser a última oportunidade de dizer que os amava...(continua...)
Os Apuros de Claudinha Curto Circuito - Parte III
- A hora da verdade -
O tempo se arrastava dolorosamente. Nenhuma novidade para resolver a minha vida. Eu ia me desesperando. Saudades das crianças... Manchas roxas pelos braços e pernas. Muitas injeções e veias destroçadas. Quatro injeções por dia . Não havia mais local que não doesse. Comer, só virando a cabeça de lado, não podia me levantar, nem travesseiro podia. Banho, só no leito. Me rolavam para lá e para cá. Eu colaborava e tratava a todos com alegria. O carinho, os cuidados e a CARIDADE de quem trabalhava lá, foram importantíssimos para mim. Não me esqueci de nenhum deles e nunca vou me esquecer.Iriam mexer dentro da minha cabeça. Na região central de meu cérebro, aquele de quem sempre me orgulhei, pois funcionava direitinho... E aí? O que seria de mim??? Já imaginaram alguém atravessar toda a sua massa cerebral e mexer lá no centro de seu cérebro? Nem tentem... E eu, que sempre fui fascinada pela anatomia, principalmente pelo cérebro, imaginava... Qual a área seria lesada? A da música?(Não poderia mais tocar piano ou violão?) A da fala? A do raciocínio? Ah, não! Isso não! Rezei muito e pedi a Deus que se tivesse que perder algo, que fosse algo que não me impedisse de dar aulas. O resto, eu dava um jeito. Iria até de cadeiras de rodas...O tempo continuava passando vagarosamente... Eu não via a hora de tudo se resolver, fosse como fosse...Finalmente uma data! Dia 20 de setembro. No dia anterior, jejum total. Tudo pronto, despedidas e uma unção dos enfermos, que no meu tempo era chamada de extrema unção. Isso me matou sem que eu morresse... Mas, sinceramente, eu me senti bem depois. Um "dormonid", a pílula da verdade, e me deixaram totalmente "light" , sem travas na língua.Mas, antes de sair do quarto, veio a notícia do cancelamento da cirurgia. Uma "anta parabólica circuncisfláutica apoptótica deuterótoca arrenótoca inerética" (é assim que me expresso em língua de palavrão) deu um tiro na cabeça e não morreu. Tomou meu lugar às pressas no centro cirúrgico.Tudo bem, eu seria operada no dia 21... De tudo, o mais difícil foi o jejum. A fome é o pior dos castigos. Mas, dopada que estava, suportei bem.A hora da verdade chegara...
Os Apuros de Claudinha Curto Circuito - FINAL
- A Nova Chance -
Eu cheia de "dormonid", lembro-me vagamente das coisas. Mas nunca vou me esquecer do que meu Szafir falou ao meu ouvido. Da nossa despedida (meu Deus muito triste!), eu não vou relatar aqui, senão não conseguirei mais escrever.Heroicamente, distribui meus preciosos bens. O piano para Ana, o cordão de ouro do tempo do império e o violão para o Du, o Vinícius (meu Ford Fiesta) para o Szafir vender e só. Ah! E as crianças para minha mãe, claro!Antes da cirurgia, uma senhora muito louca (louca?), me deu uma oração de São José. Isto me fez voltar à infância, lembrar da imagem acima da cama de minha avó paterna, que há anos estava entrevada. Nunca tinha orado à ele. Naquele dia orei. Ela colocou o papel sob minha cabeça e nunca mais a vi.Tudo correu muito bem. Fora as minhas ‘cantadas’ no "Doutor Bonitão" (gente, não é culpa minha, dormonid faz isso mesmo!), nada a me queixar. Só que sobre o tal doutor, ninguém sabia quem era, ninguém mais viu. Só eu!A cirurgia durou das 7:30h às 16:30h. Quando saí escutei o enfermeiro me dizendo que meu marido estava me vendo através do vidro. Eu o vi chorando, sorri, e apaguei.Acordei no outro dia cedinho na UTI, e logo que recobrei os sentidos, vi a infeliz alma de 22 anos, que penava com a cabeça destroçada, logo à frente. Disparei a falar mal e falar alto: "Eu lutando para viver e você jogando fora a sua vida? Idiota! Imbecil! " Etc, etc... Todos os meus aparelhos apitavam e os daquela pobre alma começaram a apitar também. Era a “Claudinha M. L. P. e Espetaculosa” de volta, com ajuda de uns alucinógenos, achando que podia mudar o mundo, ou dar moral à alguém, que já deveria ter se arrependido muito da besteira que fez... Bagunça geral na UTI. Veio um rapazinho (Jeto) e começou a conversar comigo, me pedindo calma. Achei melhor parar, a pobre alma já mostrava muito sofrimento. Percebi que estava praticamente nua, só com uma minúscula toalha de lavabo, de uns 20 cm cobrindo meus quadris. Cheia de fios e coisas me incomodando... As unhas ainda estavam de esmalte.Logo de manhã, me mandaram para o quarto. Estava incrivelmente bem, corte sequinho, dreno retirado e sem febre. Todos os movimentos "funcionaram". Só não abria o olho direito. Pensei que era seqüela, mas logo percebi que era o inchaço. Quando tiraram meu "turbante" de gaze fiquei eufórica ao perceber toda a minha juba intacta! Puxa que bom! Só não percebia a cicatriz de 25cm de fora a fora na linha dos cabelos. Eu me sentia um forro de sofá todo grampeado. Puseram um zíper na minha testa.Sozinha agora. Não podia mais acompanhantes... Só meu Szafir veio me ver rapidamente...Na madrugada do dia 23, emergência. Não havia mais quartos e tive que dividir meu quarto com o Sr. Antônio Maria, que teve derrame cerebral e estava nas últimas. Eu fui a única que não me importei, ninguém aceitou. Na ala dos homens não havia lugar. Que mal faria?Colocaram um biombo, não é permitido mulheres e homens no mesmo quarto. Pelas frestas, eu pude observar a agonia do ancião. Sr. Antônio Maria foi embora vagarosamente. Eu, absolutamente serena, vendo a sua face embranquecer e sua respiração ficar cada vez mais fraca. Ele saiu de manhã, coberto pelo lençol. Fiquei muito mal depois, mas agüentei! Herdei os biscoitos que a família dele deixou e aceitei com sinceridade. Serviram para acalmar minha ansiedade durante o dia. A única pessoa que estava "normal" ali era eu. Uns chorando, outros gritando, outros loucos de tudo. A neurologia é uma das alas mais pesadas de um hospital. Acho que só perde para a de câncer infantil.Finalmente, no dia 24, Dr. Alex, meu anjo bom, (às 7:06h da manhã!) me avisou, em segredo, que eu teria alta. (Pedi à Graça (enfermeira que mais me ajudou), que avisasse ao Szafir, ligasse à cobrar, pois tinha medo que o hospital demorasse a ligar). Logo que chegou o papel de alta, meu Szafir já estava lá, e me levou embora...Entrei no carro, o sol bateu em meu braço, fiquei atônita. O sol!!! Quanto tempo que não o via! "Olha Di, o sol no meu braço!" Ele me olhava sem entender bem se eu estava louca ou o que era...A claridade das ruas, o cheiro de ar puro das montanhas no caminho... O verde, o céu azul... Meu Deus, como é bom estar viva!Ao chegar, uma faixa na rua, me desejando felicidades. Meus filhos assustados com minha cara inchada. Mas desci do carro e entrei andando na casa de meus pais.A felicidade reinava. Ana subiu na cama e ,na ânsia de ficar comigo, sentou-se em minha cabeça... Foi só grito e choro, e a coitadinha assustada fugiu e ficou escondidinha... Meu Deus!Eu tive muita proteção... Nem meus cabelos foram raspados. Mantive minha juba, mesmo com um corte de mais de 20 cm. Nenhuma seqüela aparente. Toda a doidisse já existia antes.Voltei ao hospital um mês depois. Procurei todos os enfermeiros e agradeci aos que estavam lá. Eu nasci de novo, no dia do meu aniversário.Depois disso, muito ainda aconteceu... Pessoas paravam os carros para me olhar. Uma senhora puxou meus cabelos para ver se era peruca. Virei atração circense na cidade pequena. Fui vítima de preconceitos, mas derrubei todos comprovando a minha capacidade em fazer o que eu fazia antes. Voltei ao trabalho e fui muito bem recebida pelos colegas da escola e pelos alunos. Meu lugar de volta... Nas duas farmácias, meu lugar de volta. Um convite para o cursinho rival. Um convite para outra escola nova na cidade. Fiz uma outra faculdade (Química), para provar a mim mesma que podia. Fui à Angra dos Reis com cerca de 30 alunos e aprendi a mergulhar em alto mar com snorkell (jamais faria isto antes). Consegui tocar o piano muito mal, como antes eu tocava...No dia 25 de dezembro daquele ano, saiu o laudo do neurologista: Vida normal. Todos os testes me permitiam dirigir, trabalhar, normalmente.Um tio contou que, ao dormir, sonhou com a cirurgia e viu São José correndo em direção aos médicos e colocando a mão sob a minha cabeça. Lembrei-me imediatamente da oração da senhora "louca" e achei-a guardada nos meus pertences do hospital, que jamais havia mexido, desde que de lá eu saí. Nem lembrava mais.Veias partidas, hematomas, fraqueza. Tudo foi superado...Pensam que acabou???Cerca de um mês depois, retornei à Pouso Alegre para uma tomografia. Eles verificariam se estava tudo bem.Depois de passar por tudo que passei, de já ter feito tomografias antes, de ser feito o teste antes do exame... Tive uma rejeição ao contraste. Edema de glote, inchaço generalizado. Literalmente eu virei a "Fera" na frente do Szafir, que ficou estupefato. Quando percebi o que iria acontecer, meus conhecimentos me fizeram correr e invadir a sala do médico, e me joguei na maca e fui fazendo o diagnóstico por minha conta. Um me "atacou" com uma injeção intramuscular, enquanto o outro tentou inutilmente pegar uma veia (todas retalhadas ainda) e o medicamento ficou numa bola que virou a minha mão... Mas fui retornando ao normal lentamente e dormi o resto do dia e a noite toda... Tomografias, por favor, nunca mais...Agora chega...Hoje estou curada, sem remédios e muito agradecida pela chance de continuar... Tudo isto serviu para que eu crescesse e melhorasse como pessoa. Para que eu amasse mais ainda...Obrigada aos que tiveram a paciência de me acompanhar aqui. Sinto-me muito mais leve em desabafar, contando detalhes e um dos meus muitos apuros. Postarei outros apuros depois. Mas este, com certeza, foi o maior...

segunda-feira, outubro 02, 2006

Memórias de Borboleta V

Os Apuros de Claudinha
O Acidente

Fevereiro de 1990.
Era meu primeiro carro. Um fusca amarelo com teto solar. Chegara da reforma há apenas uma semana e estava brilhando feito ouro.
Eu estava casada há apenas dois meses e resolvemos passar o final de semana na cidade que meus pais moravam. Mas na hora de sair, o carro (o único objeto meu que nunca teve nome) mostrou problemas nos freios. Meu Szafir tentou me convencer a não ir, mas eu insisti. E ele motorista exímio que sempre foi, controlou o carro com os pulsos firmes e viajamos mais de 200 km e tudo correu bem naquele final de semana. O risco foi negligenciado pelos meus vinte e cinco anos (que, aliás, mantenho até hoje) e a cabeça de vento.

Na segunda-feira, o carro foi para o mecânico para consertar os freios e assim, na terça-feira, dia 6 de fevereiro de 1990, eu pude pegar meu carrinho para ir trabalhar em uma indústria farmacêutica que fica há uns quarenta quilômetros daqui.

Naquele dia, o Szafir precisaria do carro, então, iria comigo e voltaria com ele. Depois iria me buscar. Eram 5:30h da ”madrugada”, horário de verão, e chovia insistentemente, aquela chuvinha mansa que só é boa para as plantas e para dormir.
Eu peguei a direção, e o Szafir foi dormindo no banco do co-piloto.
Logo no início da viagem, já no estado de São Paulo, senti o volante do carro girar sem controle. Justo numa reta e numa descida, ele girava, parecia sem contato com as rodas. Eu, assustada, me descontrolei e pisei violentamente nos freios. Estes, super bem regulados, travaram as rodas e o fusca começou a capotar. Acho que foram umas cinco voltas, morro abaixo. Uma granja à esquerda e um precipício com rio à direita.
Lembro-me do painel amarelo do carro começar a rodar, o s braços longos do Szafir esticados para frente e a pista escura aparecer em meus olhos, depois tudo foi clareando e ficou ofuscante. Não vi mais nada.
Eu sentia uma felicidade imensa, uma sensação de paz, nenhuma dor, e estava numa queda infinita. Comecei a pensar, acho que estou caindo da montanha e vou parar no rio, mas o chão nunca chegava, eu apenas caía, caía, caía.
Finalmente, senti o chão e um barulho esquisito em minhas costas, algo a quebrar. Levantei-me bruscamente e vi que estava no escuro, mas e o clarão? Estava cheia de ovos, roupa rasgada e procurava o Szafir que me apareceu com o rosto coberto de sangue. Eu ignorei o sangue, era como se não fosse com ele. Eu briguei com ele, queria que encontrasse minha bolsa, talão de cheques e batom novo. Não via o carro, não via meu corpo como estava, eu queria sair daquele mato, tenho horror de insetos e outros bichos que poderiam estar ali. E ainda mandei que não falasse nada, eu capotei e nem venha me falar nisto, eu acabei com meu carrinho!
A adrenalina ainda me fez pedir carona no asfalto, mas ninguém parava. Somente quando o dia clareou, um senhor com uma Pampa totalmente carregada aceitou me levar à cidade se eu fosse em cima das caixas. Eu fui, precisava chamar alguém. E ainda deixei o Szafir tomando conta do carro. Eu não tinha nenhuma consciência da gravidade e do que acontecera, eu queria sair dali.
Cheguei à cidade, chamei meu cunhado que é mecânico e voltamos para o local do acidente. O carro dele estava consertando, pedimos emprestado o carro de outro cunhado, que demorou a trazer. Na ida, ainda paramos duas vezes pois o carro tinha um defeito. Meu Deus! Eu queria que acabasse aquilo!
Quando lá chegamos, como que se tivesse levado um balde de água fria, eu lembrei que o Szafir estava sangrando, que estava sozinho e que mal respirava. Fomos socorridos e trazidos para o hospital de Jacu city.
Eu somente acompanhava a maca em que ele estava e pedia que me perdoasse. Ele voou do carro e bateu de frente a uma árvore, cortando a testa. Depois que lhe deram os pontos, ele passou a ter mais dificuldades respiratórias e precisou ser removido. Um dos médicos, amigo nosso, me passou o olho e largou o que fazia. Me levou para outra sala quase carregada, eu ainda estava de pé ajudando a socorrer. Me obrigou a sentar e disse que estava tudo ótimo e que o aparelho de raio x havia quebrado. Eles o levariam para cidades vizinhas para poder tirar uma chapa. Eu acreditei na mentira e relaxei. Aí desmaiei.
Szafir teve uma vértebra amassada e isto atingiu o centro respiratório, a coisa era séria e ele ainda corria o risco de ficar paralítico.
Eu tinha um pequeno pedaço de brita enfiado na sola do pé, sangrava em bicas e não percebia. Minha perna esquerda foi amassada, estava muito machucada e estourando na calça jeans que era bem larga. Eu tinha hematomas no corpo todo, machuquei bastante a coluna e minha cabeça tinha cinco enormes galos, que me transformaram no verdadeiro ET do Sul de Minas.
Fui medicada e passei vários dias toda roxa e com muitas, mas muitas dores. Minha coluna dói até hoje. O Szafir ficou alguns dias no hospital, longe de mim, teve que usar colete de aço por alguns meses, mas se recuperou bem.
Eu só fui conseguir olhar para o carro, dois anos depois. Ele virou ferro velho no fundo de um quintal da família.
Passado um ano, eu já estava grávida de meu primeiro filho, e tive que responder um processo para uma juíza maluca, famosa na região por suas excentricidades. Fui condenada por tentativa de homicídio culposo e minha pena, três meses de detenção, ou serviço comunitário, em pleno carnaval. Além de perder a carteira de motorista. Tudo porque falei a verdade, eu não sei o que aconteceu. Se tivesse mentido e falado que um simples farol me tirou a visão, nada disto teria acontecido. Não houve perícia, eu não bati com ninguém e o carro era meu. Incompetência!
Paguei minha pena em dinheiro, e tive que entrar num fusca novamente para tirar outra carteira de habilitação. Entrei, passei no exame e evito sempre que posso os fuscas.
Por sorte (sorte?), o carro foi para o lado esquerdo, onde havia uma granja. Eu caí em ninhos cheios de ovos, que amorteceram a queda e protegeram meu pescoço. Mais uma vez a mão de Deus me amparou na hora certa...
E de mais um apuro eu escapei...

sexta-feira, julho 28, 2006

Memórias de Borboleta IV


- OS APUROS DE CLAUDINHA -

- REFÉM DE ASSALTO -

E chegou a hora da faculdade.
A fase de adaptação não foi fácil. Em terra estranha, cidade grande e violenta.
Eu ficava horas na janela vendo os carros passando, os edifícios e suas luzes que me fascinavam e me apavoravam. Tinha o lado bom da cultura, mas o lado ruim da falta de segurança.

Eu tinha dezessete anos.

Meu quarto era dividido com Melina, outra mineira, de Araxá. Além de nossas camas e guarda-roupa embutido, tínhamos o nosso banheiro e uma pequena sala dentro de nosso quarto. Os outros quartos eram apenas quartos. Éramos oito meninas que morávamos em quartos confortáveis, quase no centro de Campinas – SP.

Era uma terça-feira quente e abafada de 1983. A maioria das meninas saía para a faculdade à noite. Elas levavam os três carros que enchiam a garagem. Ali ficamos apenas eu, Mariza e Márcia, cada uma em seu quarto. Melina e Lúcia que subiram para o andar de cima, na casa da dona da pensão, para ver novela.
A casa era muito segura, muros e cadeados, não tinha como ser invadida. Não?

Eu encostei a porta de meu quarto, e fiquei apenas de camiseta. Aconcheguei-me em minha cama e iniciei meus estudos.

Num determinado instante parecia estar ouvindo pessoas rezando um Pai Nosso. Parei, ouvi e achei normal, pois estariam fazendo uma oração. A filha da dona da pensão veio visitar a mãe porque iria ser internada naquela noite para induzir um parto que passava da hora. Estavam muitos lá em cima.

Alguns minutos se passaram quando ouvi gritos e a porta do meu quarto ser aberta com um chute. Assustada, gritei e dei de cara com um homem armado que parecia assustado comigo também.

Não tinha muitos valores, mas Melina estava com todas as suas jóias para levar para sua casa nova, ela se casaria em breve. Fiquei estática, sentada na beira da cama e tentei pegar uma saia que estava perto. Foi aí que o homem começou a passar as mãos em meus cabelos e tentava aproximar minha cabeça dele. Eu imaginei o que ele queria e senti perto de mim uma força enorme que não sei explicar. Eu me levantei, fiquei na frente das jóias de Melina olhei nos olhos e falei firmemente: Não faça isso, eu sou muito novinha! Ele parou imediatamente. Mandou que eu vestisse a saia e subisse. Ele não viu as jóias. Mas levou meu anel de brilhante e até meu anel de madeira.

Quando saímos do quarto, encontramos com outro homem que trazia Mariza, de camisola e aos prantos. Ela subiu na frente e eu subi com uma arma fincada nas minhas costas. Ainda posso sentir o frio na espinha.

Já no andar de cima, levaram-nos todos para o quarto do casal. Muitas pessoas, nem sei quantas ao todo. O Casal, a filha grávida, genro, colegas, empregada. Dois deles ficaram conosco e outros dois começaram a revirar a casa. Não encontrando cofres e outros valores, resolveram pegar alguém de refém para dizer onde estavam as jóias e o dinheiro e este alguém fui eu.
O rapaz mais alterado e mais nervoso passou o braço em meu pescoço, enfiou a arma em meu ouvido direito e me fez andar com ele pela casa para que localizasse as coisas. Mas meu Deus! Não era a minha casa, eu não conhecia nada, como poderia?

Fiquei muito, mas muito tempo naquela situação, sendo ameaçada. A dona da casa falando que nós éramos estudantes e que não conhecíamos a casa, e eles pressionando.

Eu imaginava, se ele atirasse e eu não morresse, qual área de meu cérebro seria afetada? Eu estava estudando neuro-anatomia, me concentrei neste assunto, assim passou sem que eu me desse conta.

Quando ele desistiu e me largou eu me escondi num pequeno espaço entre o guarda-roupa e a parede. Até hoje não sei como entrei ali.
A moça grávida teve uma grande idéia. Resolveu fingir que estava tendo o neném. Escondeu pulseiras e brincos na boca e começou um teatro do qual jamais me esquecerei, pois pensei ser verdade. Os quatro bandidos se assustaram, não conseguiram roubar muita coisa e por sorte não tinha nenhum carro dentro da casa naquela hora. Eles, apavorados, nos trancaram no quarto e saíram.

Eu permanecia muda e presa no pequeno espaço. Alguém se lembrou da Márcia. Onde estaria? O quarto dela era o último da casa. Todos gritamos, pedimos socorro e nada da Márcia, garota de Santos-SP.

Bem mais tarde, alguém chegou e nos libertou do quarto e foi quando a polícia chegou e me tirou do meu esconderijo. Eu estava como que flutuando. Não tremia, não chorava. Eu sentia uma presença muito forte ao meu lado e confiava que tudo daria certo.

Mas e Márcia?

Enquanto socorriam a grávida, que depois realmente entrou em trabalho de parto, fomos junto com a polícia procurar Márcia, cujo quarto era o último, longe dos demais. Eu fui à frente da meninas, logo atrás do policial. A cena foi chocante. Ela estava deitada em sua cama, com o short aberto e toda descomposta. Acendemos a luz e gritamos. Achamos que estava morta ou desmaiada. Mas ela na verdade estava dormindo. Os ladrões não a viram e ela não percebeu nada. E ela foi então a que pior ficou de todas nós, que estávamos como que anestesiadas. Ela teve que tomar calmante.

Naquela noite, dormimos quase todas num mesmo quarto. Eu fiquei no chão, logo abaixo da cama de uma colega muito, mas muito acima do peso. Não dormi de medo de ladrão e da cama desabar sobre mim.

No outro dia, ficamos sabendo que um rapaz muito bem vestido chegou ao portão trancado e chamou o dono da casa. Quando ele se aproximou, o rapaz o rendeu e entraram quatro assaltantes. Um deles, negro, musculoso e bem calmo usava um capuz preto. Os outros dois morenos, bonitos, bem vestidos, mostravam a cara. Um loiro feio ficava olhando a entrada da casa.

Meses depois a quadrilha foi presa quando assaltava um banco. Quem estava no comando? Um delegado de polícia, de uma cidade do interior paulista!

Tivemos muita sorte em perder só algumas coisas materiais.
Eu nunca mais saí na cidade à noite sozinha. Esperava os amigos, eles me levavam em casa, ou eu não saía mesmo e me trancava.

Por causa deste apuro, perdi um ano de faculdade e perdi minha alegria de morar naquela cidade. Mas foi mais um apuro do qual me livrei...

Eu sei que tenho muita proteção, não posso duvidar jamais...

quinta-feira, julho 13, 2006

Memórias de Borboleta III - Os Apuros de Claudinha - O Escorpião

Estávamos no final dos anos sessenta.
Eu e meu irmão ficávamos com Vinha (Silvinha, nossa ama), para que nossos pais fossem trabalhar. Quando meu irmão dormia, eu ajudava Vinha em pequenas tarefas domésticas, enquanto ela me contava histórias de seus namorados, das músicas da moda, das roupas e coisas que as moças gostavam na época.
Íamos para a casa de minha avó paterna com ela, ou ficávamos em nossa casa.
Naquele dia, ficamos em casa. Eu usava um vestido xadrez, com dois bolsinhos na frente e por baixo uma blusinha branca, toda de rendinhas e bordados. Caprichos de Fifi, minha mãe.
Meu irmão dormiu e Vinha me falou: vamos pegar as meias no varal? Eu fui, toda feliz . Poderíamos conversar e cantar.
Na parte de baixo de minha casa, funcionava uma fábrica de chuteiras, cujas janelas do fundo, um depósito de couro, davam para a área de lavanderia da casa. Para aproveitar o sol, Hilda, a nossa secretária, fez um varal encostado nesta parede na escada e lá eram colocadas para secar as meias.
Eu fui ajudando a Vinha e, para ser mais eficiente, fui colocando as meias no bolsinho de meu vestido.
Subimos a escada e fomos colocar as roupas em cima da cama de meus pais e enquanto dobrávamos, íamos conversando. Ouvíamos o velho rádio de pilha do meu pai.
Quando coloquei a mão no bolso do vestido para pegar as meias, senti uma dor forte e gritei! Peguei as meias de novo e a dor foi mais forte ainda. Comecei a chorar e assustada, a Vinha arrancou o vestido de mim e jogou-o na cama. Apareceu um escorpião horroroso, vindo de dentro de uma meia de meu pai.
Enquanto eu me debulhava em lágrimas, todos corriam para me acudir. A palma de minha mão foi ficando roxa e inchada, e a dor era tanta que me lembro como se fosse hoje.
No hospital da cidade não havia soro. Só havia em Belo Horizonte, que ficava a 50km de lá. Meu avô José, preparava o carro para a viagem, que não era fácil naquela época. Nesta demora, eu passava muito mal e via o desespero de minha mãe, que procurava não demonstrar. Mas eu via seus lábios brancos de susto e sabia quando ela estava passando mal.
Doía, doía muito!
Alguém colocou o escorpião num vidro e o mostrou ao médico. Lembro-me dele dizer que, infelizmente, era dos venenosos.
Meu tio veio com uma relíquia de Santa Rita de Cássia, que ganhou de um cardeal amigo da família que morava na Itália. Com um alfinete, colocou em minha roupa para que me protegesse na viagem. Nesta hora eu já havia dormindo (ou desmaiado?) e o carro ainda não se encontrava em condições para viajarmos.
Meu pai cogitou em um carro de praça (táxi), daqueles pretos que parecem besouros, nem sei o nome deles. Não tínhamos telefone, precisávamos mandar chamar o motorista. Demoraram horas.
Quando tudo estava pronto, eu acordei toda faceira e sem reclamar da dor. A relíquia havia sumido. Não sabemos se alguém roubou de mim, ou se eu a perdi, mas nunca mais foi vista.
Eu superei o veneno sem ter recebido socorro médico.

Nunca mais peguei meias no varal, e o dono da fábrica de chuteiras, mandou limpar o depósito, que estava infestado de escorpiões.
Meu pai comprou uma casa e nos mudamos logo para lá.
Apesar dos cinco anos, eu nunca me esqueci deste apuro...

quinta-feira, maio 25, 2006

Memórias de Borboleta II

(Eu, na janela do quarto de meus pais, no bairro da Carioca, 1968/69)


- Os Apuros de Claudinha -
- O Boi -

infância faz de nós adultos saudosos. Época de delícias e de inocência, de sorrisos e de curiosidades. Também de aventuras inesquecíveis...
Hoje me lembrei do caso do boi bravo, um dos maiores apuros (e foram muitos) de Claudinha...
Eu, com quatro anos, e meu irmão com menos de um ano, ficávamos aos cuidados de nossa babá (Silvinha - a Vinha) muito querida, enquanto nossos pais trabalhavam. Minha mãe sempre nos deixava na casa de nossa avó paterna, com a babá, mas naquele dia ficamos em nossa casa.
Naquele tempo, fim dos anos 60, em nossa cidade, o transporte de gado para o matadouro era feito através de boiadas. Aqueles animais, dos quais tenho medo até hoje, circulavam em procissão rumo à morte. Sempre ouvi casos horríveis de crianças que ficaram na rua e acabaram no meio da boiada, umas foram pisoteadas, outras saíram incólumes, milagre! Ora, eram casos contados por todas as crianças da rua e eram assuntos meio contagiantes e muito misteriosos... Embora eu nunca tivesse visto nenhum tipo de acidente, acreditava em todas as histórias da meninada.
Neste belo dia, a Vinha, com meu irmão no colo, chamou-me à janela da sala para ver o boi da cara preta passar. “Boi, boi, boi, boi da cara preta...” Minha mãe sempre ensinou que isto era música de terror e não admitia, mas a babá cantava e a gente achava graça. E lá ia o boi preto da cara preta.
Jamais me esquecerei daquela cara, toda preta, bufando, chifres tortos e de repente olhando nos meus olhinhos de menina assustada.
Ele continuou me olhando e deve ter sentido o meu medo porque veio furioso em minha direção.
Só me lembro da Vinha gritando “Vaimbora”! E com apenas uma mão tentando fechar as janelas de madeira antiga, com meu irmão no colo.
O animal furioso, tentava entrar dentro de casa e eu me lembro de ver suas patas batendo na Vinha e na janela. Ela deixou meu irmão no sofá e mandou que eu corresse, enquanto fechava a janela.
A imagem do quarto de meus pais, jamais saiu de minha cabeça. Era um quarto simples, uma cama de casal, um guarda-roupa, um berço enorme, que já tinha sido meu e não entendia porque tinham dado para o meu irmão. Ao lado da cama, dois abajures de louça, recortados, que faziam desenhos no teto e nas paredes. Ainda lembro direitinho da janela que dava para o bairro da carioca (vide foto) e da colcha felpuda na qual eu me ajoelhei.
Jamais havia rezado com tanto fervor. Olhava o crucifixo acima da cama e pedia a Jesus para nos salvar.
Não sei por quanto tempo fiquei ali. Pareceu-me uma eternidade. Só saí quando a Vinha conseguiu fazer meu irmão parar de chorar e o colocou no berço (hmmm, o meu berço...). Ela me levou até a cozinha, mostrou que a janela estava fechada e me deu um bom copo de água com açúcar. Nós duas tremíamos e ríamos de tudo.
Ela não me deixou ver, nem saber naquele dia, mas o boiadeiro matou o boi ali mesmo na porta de minha casa. O animal endoidou.
Deste dia em diante a Vinha passou a ser minha heroína, ela venceu o boi bravo! E passou então a fazer parte das minhas brincadeiras, ela era o cow-boy e eu era o bandido, claro (Já falei do meu desvio de caráter em sempre me apaixonar pelo bandido!)... Ela era o mocinho, e eu assaltava o pote de biscoitos do xerife (minha mãe, rsrs), ou as bananas da vizinha (Ah, Dona Jandira)...

E quantos aos bois, que fiquem bem longe de mim...

.:: Você Ouve: Noites Com Sol - Flávio Venturini ::.

sexta-feira, maio 19, 2006

Memórias de Borboleta I

Os Apuros de Claudinha – O Choque



Não me recordo de outra lembrança mais antiga que esta.
Estava em meu berço enorme, do tamanho de uma cama de solteiro. Lembro-me da colcha , dos lençóis bordados por minha mãe. Eu deveria estar chamando a minha ama e ela não atendia.
Lembro-me do quarto de meus pais, com meu berço logo ao lado. O abajour de louça perfurado, que fazia desenhos no teto. Um quarto subseqüente cuja janela me causava pavores noturnos, onde eu via rostos e fantasmas quando era maiorzinha... Mas estas são lembranças mais recentes que deste dia...
Eu sozinha no berço, um berço enorme. E de repente uma visão. O apagador de luz!
Era daqueles antigos cujos fios desciam do teto da casa e tinha que apertar um botão para acender a luz. Eu me lembro de ter ficado encantada com o objeto estranho e de me levantar para pegá-lo. Alcancei o fio e girei as duas partes, deixando à mostra o fio desencapado e os contatos de metal. Daí a colocar o meu dedinho foi uma fração de segundo...
Imediatamente me vi em apuros e vi uma espécie de fogo que não desgrudava de meu dedo. Ainda sei qual foi a sensação desagradável, tamanho o choque que recebi naquela hora, e eu era apenas um neném.
Tudo o que ocorreu depois, somente sei porque me foi contado. Fui encontrada dormindo e assim continuei por muitas horas a mais que o costumeiro. Minha mãe, ao chegar do trabalho, estranhou por eu não estar esperando-a com a ama. Ao chegar em casa a ama se despediu rapidamente e se foi. Minha mãe foi direto ao quarto e deparou com um neném com uma cor estranha e o apagador aberto. Nem precisou pensar!
Naquela época só meu avô tinha carro, e os táxis eram carros pretos que demoravam para aparecer. Minha mãe conseguiu achar meu avô e me levaram para o hospital.
Por sorte, eu já havia me recuperado por mim mesma.

Meu grande espírito protetor, meu anjo da guarda, percebeu neste momento que eu seria alguém a lhe dar muitíssimo trabalho pelo resto da vida...

Ele estava certo, e ninguém imaginava o quanto ele ainda trabalharia...

PS: A ama, foi catar coquinho em outras paradas...
Aí veio a Silvinha, nossa “Vinha”,minha babá e de meu irmão Márcio. E dela temos ótimas recordações...

quinta-feira, abril 20, 2006

Como deveriam ser os meninos em 1980...

Esta lista já apareceu em várias edições do Transmimentos, mas eu a considero a minha obra prima das listas. Não se trata de elogio em causa própria, seria desaforo, mas é a fotografia da minha transformação de menina em moça. A formação dos meus conceitos e a minha eterna mania de listas e organizações desorganizadas...
Coisas de Claudinha...

(Clique na imagem para ler melhor)






.:: Você ouve: Clube da Esquina II - Lô Borges (A música da minha vida...) ::.

quarta-feira, março 22, 2006

Meus Lugares Antigos






Saudades de cada luar, de cada lampião, de cada poça de água, de cada brincadeira infantil. Saudades do primeiro beijo, da primeira briga, do primeiro gole de cerveja, do primeiro show... "Mundo, mundo vasto mundo"...
Tempo, tempo quanto tempo...
Veloz, ele deixa a distância maior à cada século que vivo a sonhar...

quinta-feira, março 16, 2006

Memórias de Borboleta IX



Existem textos que mexem comigo, com minha imaginação, com meu coração... Existem músicas que me fazem querer dançar coladinho (esta é uma delas...).
Eu sei que existe uma Claudinha menina escondida nesta mulher que anda meio tristinha, uma menina tímida e insegura(acreditem!)...
Este texto faz parte do meu caderninho de capa laranja (viu Duda?), relíquia dos tempos de menina. Queria relembrar, quem vem comigo?
...Naqueles dias... Faltava quatro meses para eu conhecer o Szafir, tentava convencer Duda a namorar o meu novo amigo, o “nosso” Leilei (e consegui!!!). Faculdade, 1º ano, tudo novo, cidade grande, eu refém de assalto, novas bandeiras...

Chuva e Estrelas
(Campinas -SP - março/1983)

A brisa da tarde chegou trazendo-me lágrimas, soluços e inquietação. O céu se encobriu de nuvens obesas e negras, o mundo parou por instantes...
A luz fugiu de mim e rompeu minhas barreiras. Muitos não a veriam e haveriam de pagar caro por sua distração... As minhas linhas coloridas, que marcavam bordados em meus linhos, desbotaram diante desta fuga... Sem conseguir enxergá-las mais, fixei meus olhares para a imensidão e pude ver a tormenta surgir do nada, mostrando o tudo... Meu coração, tal e qual, tanto e quanto, atormentado, atordoado, disparou de medo e de admiração, diante do fenômeno da natureza...

A chuva desabou com grande estardalhaço e fúria de titã, lavando minha alma e seus desesperos... As águas prateadas revelaram meus segredos e minha face enrubescida me condenou, denunciou. Nem precisava, sempre falei mais que deveria... Sempre me mostrei toda, mesmo sem querer. Seria novamente motivo de risos, seria de novo um brinquedo.

Do alto dos prédios, ventos uivantes brincaram de carregar gotas de água pelas vidraças. Senti medo da cidade grande, medo do desconhecido, medo de enfrentar meu espelho, medo de saber quem realmente sou.

E quando a temida noite enfim chegou, sua suavidade incorporou-se ao céu e lançou purpurinas de estrelas sobre o meu viver... Levou para longe a chuva. Tratou de me acalmar. Nunca mais tive medo dela, a noite me trazia paz e aconchego...

Um vento morno encheu meu coração de promessas e, quando um novo dia amanheceu, quase tudo estava em seu lugar. As poucas árvores da praça em frente, agora sem folhas, mantinham seus braços erguidos como em prece...
Eu, agora sem lágrimas, mantinha meu coração aberto...
Agradecendo, pois... sobrevivemos!

Porém, sempre haverá um novo entardecer, e com ele, chegará um sentimento estranho, carregado de nostalgia , melancolia e saudade nem sei de quê. E eu sempre estarei esperando a noite, seus veludos e suas purpurinas, para poder repousar e sonhar...

.:: Você ouve: Love of My Life - Queen (A música dos meus quinze anos - 1979)

terça-feira, fevereiro 28, 2006

CURTO CIRCUITO OU OS APUROS DE CLAUDINHA

(A franja ainda cortada pela metade, uma leve depressão acima das sombrancelhas. Esta é minha foto da vitória)


Os Apuros de Claudinha
Curto Circuito - Parte I


Era setembro, 2001, no terceiro dia. Havia rumores na escola de que fariam uma festa surpresa no dia do meu aniversário. Na farmácia, muito serviço, como sempre. Terminei tudo e me preparei para minha caminhada diária. O sol, escaldante, das 16:00h, não foi capaz de me fazer desistir. Fui à luta, me protegi como pude. Cheguei bem. Não sentia nada. Não estava doente...
À noite, fui me deitar mais cedo. Estava preocupada com meu filho que havia se sentido mal. Como não me sentia calma, resolvi tomar uma "arma secreta" que minha médica receitou, para relaxar e tentar dormir. Às 21:30h, um telefonema, avisando que os exames do garoto teriam que ser repetidos, havia alteração, mas nada de ruim. O nível de triglicérides muito alto, o que era de se esperar de quem comia carboidratos sem parar... Mas eu não acreditei que seria isto, entrei em pânico, minha pressão arterial subiu demais e aí... Deu tilt... Curto circuito mesmo!!!
Tive uma convulsão e muito enjôo. Depois, minha nuca começou a queimar e parecia que minha cabeça iria subir pelos ares, como um foguete. Como ela não desgrudava, a dor era insuportável. Gritava, desmaiava. Só sei disto por relatos de quem viu, porque eu não me lembro nem da dor (Ufa!!). Ao sentir mal, fui tomar um banho e chamei o Szafir que estava na cozinha. A partir da fase da nuca queimar, eu não me lembro de mais nada.
O Szafir chamou o médico.
Ana dormia, não viu nada, tinha três anos. Du, 10 anos, dormia na casa da avó e também não viu nada, ainda bem...
A rigidez da nuca e a confusão mental levaram o Dr. Eduardo a me internar na Santa Casa, mas como não melhorava, ele diagnosticou AVC hemorrágico e me mandou urgentemente para Pouso Alegre. Fui de ambulância, com minha mãe, que a tudo suportou bravamente. Meu Szafir atrás de carro, minha vida toda por um fio. O aviso do médico: É grave, muito grave. Não sabemos se ela sobreviverá à viagem, ou ao AVC... Não há muitas chances de vida...


Os Apuros de Claudinha

Curto Circuito - Parte II
- O Primeiro Milagre -
"Vida... Louca vida... Vida breve..."
Dois dias, ora consciente, ora inconsciente, mas eu não tenho lembranças. Vendo pelo lado bom, jamais completei 37 anos... Recebi a todos, conversei, mas não me lembro.
Tomografia, diagnóstico: Aneurisma cerebral hemorrágico, na carótida. Presente de aniversário.
Tenho pouquíssimas lembranças depois destes dias. Totalmente sem noção das horas. Sei que o tempo passava, pela troca de acompanhantes, pelas pessoas que iam e vinham, no que parecia um piscar de olhos meus...
Acordava num intervalo de muitas injeções e comprimidos. Um banho, um almoço, um café. Que dia seria???
Meu Szafir, tão alto, dormindo encolhido perto de mim, sem nenhum conforto. Meus cunhados, João e Wilson me surpreenderam. Nunca imaginaria que seriam companhias tão boas, tão necessárias. Todos, cunhadas, cunhados, médicos da família, revezando, num esquema, numa cidade 100km distante...
E as crianças? "Estão com sua mãe". Sosseguei. Entreguei meus pontos e meus filhos. Estariam bem.
Não podia levantar a cabeça, as pernas enfaixadas para evitar trombose, um calor insuportável...
No dia 11 de setembro, finalmente, minhas veias estavam em condições de um exame, tipo cateterismo , para estudar o local do Acidente Vascular Cerebral (AVC).
Enquanto as "Torres Gêmeas" desabavam em New York, eu estava correndo risco de vida. Para quem não sabe, quando se tem um AVC, as veias entram em espasmo e tudo pode se perder...
Os médicos, enquanto realizavam o exame, comentavam o atentado. Eu ouvia trechos e estava assimilando de maneira confusa. Em Nova York? Então, eu sofri um acidente em NY? Como? Como vim parar aqui? O que aconteceu? Onde consegui grana e tempo para viajar? Ninguém me ouvia e ninguém me respondia.
O que eles não imaginavam, aconteceu. Meu sofrido e cansado batedor deu sinais de perigo. Eu, como se assistisse ao lado da mesa, via todos correndo e um deles me machucou muito o peito, outro ajudava, enquanto uma enfermeira pressionava alternadamente o meu peito e a minha virilha. Nesta última, para estancar o sangue da incisão para o exame. Não recobrava os sentidos. E, devido aos anticoagulantes tomados, também não estancava o sangue.
Até que pensei: Mas, e as crianças? Se estou aqui, onde estão as crianças??? Estão neste mesmo acidente? Preciso achá-las! Entrei em pânico!
Imediatamente, senti uma violenta sensação de queda e acordei de sobressalto. Abri os olhos e vi os dois médicos que me machucavam se cumprimentarem e rirem para mim.
Fui para o quarto. Depois de alguns dias, tive consciência do atentado de 11 de setembro, mas não da sua gravidade.
Neste dia, Beto Guedes e amigos gravavam um cd num show especial (em homenagem aos seus 50 anos), e dedicaram-no às vítimas do atentado (Szafir me deu o cd de presente, quando fez um ano)... Ainda me lembro quando o Beto cantou na Praça Tiradentes, em 1980, para todos os aniversariantes dali, no dia do meu aniversário, "quando entrar setembro e a boa nova..."
Começou então a espera pela decisão. Seria operada, mas quando?
Já estava no hospital há 10 dias, e nenhuma chance de voltar para casa. Só a certeza de que havia sobrevivido ao AVC, sem seqüelas. O que por si só já é um milagre...
A saudade de casa, a vontade de ver os filhos... Mesmo meu Szafir traficando um celular (puxa vida, até os bandidos fazem isto, porque não eu?), e eu falando escondido com eles, não dava para matar as saudades. Eu não podia falar muito, a emoção poderia detonar a bomba que eu trazia comigo, desde que nasci...
Para Ana, eu estava fazendo um curso. Ela custou a me perdoar por eu ter saído sem dizer tchau. O Du, mais velho, compreendia tudo, sofria calado. Eu, mais ainda, aproveitava cada chance de falar com eles, pois sempre achava que poderia ser a última oportunidade de dizer que os amava...

(continua...)


Os Apuros de Claudinha

Curto Circuito - Parte III
- A hora da verdade -
O tempo se arrastava dolorosamente. Nenhuma novidade para resolver a minha vida. Eu ia me desesperando. Saudades das crianças... Manchas roxas pelos braços e pernas. Muitas injeções e veias destroçadas. Quatro injeções por dia . Não havia mais local que não doesse. Comer, só virando a cabeça de lado, não podia me levantar, nem travesseiro podia. Banho, só no leito. Me rolavam para lá e para cá. Eu colaborava e tratava a todos com alegria. O carinho, os cuidados e a CARIDADE de quem trabalhava lá, foram importantíssimos para mim. Não me esqueci de nenhum deles e nunca vou me esquecer.
Iriam mexer dentro da minha cabeça. Na região central de meu cérebro, aquele de quem sempre me orgulhei, pois funcionava direitinho... E aí? O que seria de mim??? Já imaginaram alguém atravessar toda a sua massa cerebral e mexer lá no centro de seu cérebro? Nem tentem... E eu, que sempre fui fascinada pela anatomia, principalmente pelo cérebro, imaginava... Qual a área seria lesada? A da música?(Não poderia mais tocar piano ou violão?) A da fala? A do raciocínio? Ah, não! Isso não! Rezei muito e pedi a Deus que se tivesse que perder algo, que fosse algo que não me impedisse de dar aulas. O resto, eu dava um jeito. Iria até de cadeiras de rodas...
O tempo continuava passando vagarosamente... Eu não via a hora de tudo se resolver, fosse como fosse...
Finalmente uma data! Dia 20 de setembro. No dia anterior, jejum total. Tudo pronto, despedidas e uma unção dos enfermos, que no meu tempo era chamada de extrema unção. Isso me matou sem que eu morresse... Mas, sinceramente, eu me senti bem depois. Um "dormonid", a pílula da verdade, e me deixaram totalmente "light" , sem travas na língua.
Mas, antes de sair do quarto, veio a notícia do cancelamento da cirurgia. Uma "anta parabólica circuncisfláutica apoptótica deuterótoca arrenótoca inerética" (é assim que me expresso em língua de palavrão) deu um tiro na cabeça e não morreu. Tomou meu lugar às pressas no centro cirúrgico.
Tudo bem, eu seria operada no dia 21... De tudo, o mais difícil foi o jejum. A fome é o pior dos castigos. Mas, dopada que estava, suportei bem.
A hora da verdade chegara...


Os Apuros de Claudinha

Curto Circuito - FINAL

- A Nova Chance -
Eu cheia de "dormonid", lembro-me vagamente das coisas. Mas nunca vou me esquecer do que meu Szafir falou ao meu ouvido. Da nossa despedida (meu Deus muito triste!), eu não vou relatar aqui, senão não conseguirei mais escrever.
Heroicamente, distribui meus preciosos bens. O piano para Ana, o cordão de ouro do tempo do império e o violão para o Du, o Vinícius (meu Ford Fiesta) para o Szafir vender e só. Ah! E as crianças para minha mãe, claro!
Antes da cirurgia, uma senhora muito louca (louca?), me deu uma oração de São José. Isto me fez voltar à infância, lembrar da imagem acima da cama de minha avó paterna, que há anos estava entrevada. Nunca tinha orado à ele. Naquele dia orei. Ela colocou o papel sob minha cabeça e nunca mais a vi.
Tudo correu muito bem. Fora as minhas ‘cantadas’ no "Doutor Bonitão" (gente, não é culpa minha, dormonid faz isso mesmo!), nada a me queixar. Só que sobre o tal doutor, ninguém sabia quem era, ninguém mais viu. Só eu!
A cirurgia durou das 7:30h às 16:30h. Quando saí escutei o enfermeiro me dizendo que meu marido estava me vendo através do vidro. Eu o vi chorando, sorri, e apaguei.
Acordei no outro dia cedinho na UTI, e logo que recobrei os sentidos, vi a infeliz alma de 22 anos, que penava com a cabeça destroçada, logo à frente. Disparei a falar mal e falar alto: "Eu lutando para viver e você jogando fora a sua vida? Idiota! Imbecil! " Etc, etc... Todos os meus aparelhos apitavam e os daquela pobre alma começaram a apitar também. Era a “Claudinha M. L. P. e Espetaculosa” de volta, com ajuda de uns alucinógenos, achando que podia mudar o mundo, ou dar moral à alguém, que já deveria ter se arrependido muito da besteira que fez... Bagunça geral na UTI. Veio um rapazinho (Jeto) e começou a conversar comigo, me pedindo calma. Achei melhor parar, a pobre alma já mostrava muito sofrimento. Percebi que estava praticamente nua, só com uma minúscula toalha de lavabo, de uns 20 cm cobrindo meus quadris. Cheia de fios e coisas me incomodando... As unhas ainda estavam de esmalte.
Logo de manhã, me mandaram para o quarto. Estava incrivelmente bem, corte sequinho, dreno retirado e sem febre. Todos os movimentos "funcionaram". Só não abria o olho direito. Pensei que era seqüela, mas logo percebi que era o inchaço. Quando tiraram meu "turbante" de gaze fiquei eufórica ao perceber toda a minha juba intacta! Puxa que bom! Só não percebia a cicatriz de 25cm de fora a fora na linha dos cabelos. Eu me sentia um forro de sofá todo grampeado. Puseram um zíper na minha testa.
Sozinha agora. Não podia mais acompanhantes... Só meu Szafir veio me ver rapidamente...
Na madrugada do dia 23, emergência. Não havia mais quartos e tive que dividir meu quarto com o Sr. Antônio Maria, que teve derrame cerebral e estava nas últimas. Eu fui a única que não me importei, ninguém aceitou. Na ala dos homens não havia lugar. Que mal faria?
Colocaram um biombo, não é permitido mulheres e homens no mesmo quarto. Pelas frestas, eu pude observar a agonia do ancião. Sr. Antônio Maria foi embora vagarosamente. Eu, absolutamente serena, vendo a sua face embranquecer e sua respiração ficar cada vez mais fraca. Ele saiu de manhã, coberto pelo lençol. Fiquei muito mal depois, mas agüentei! Herdei os biscoitos que a família dele deixou e aceitei com sinceridade. Serviram para acalmar minha ansiedade durante o dia. A única pessoa que estava "normal" ali era eu. Uns chorando, outros gritando, outros loucos de tudo. A neurologia é uma das alas mais pesadas de um hospital. Acho que só perde para a de câncer infantil.
Finalmente, no dia 24, Dr. Alex, meu anjo bom, (às 7:06h da manhã!) me avisou, em segredo, que eu teria alta. (Pedi à Graça (enfermeira que mais me ajudou), que avisasse ao Szafir, ligasse à cobrar, pois tinha medo que o hospital demorasse a ligar). Logo que chegou o papel de alta, meu Szafir já estava lá, e me levou embora...
Entrei no carro, o sol bateu em meu braço, fiquei atônita. O sol!!! Quanto tempo que não o via! "Olha Di, o sol no meu braço!" Ele me olhava sem entender bem se eu estava louca ou o que era...
A claridade das ruas, o cheiro de ar puro das montanhas no caminho... O verde, o céu azul... Meu Deus, como é bom estar viva!
Ao chegar, uma faixa na rua, me desejando felicidades. Meus filhos assustados com minha cara inchada. Mas desci do carro e entrei andando na casa de meus pais.
A felicidade reinava. Ana subiu na cama e ,na ânsia de ficar comigo, sentou-se em minha cabeça... Foi só grito e choro, e a coitadinha assustada fugiu e ficou escondidinha... Meu Deus!
Eu tive muita proteção... Nem meus cabelos foram raspados. Mantive minha juba, mesmo com um corte de mais de 20 cm. Nenhuma seqüela aparente. Toda a doidisse já existia antes.
Voltei ao hospital um mês depois. Procurei todos os enfermeiros e agradeci aos que estavam lá. Eu nasci de novo, no dia do meu aniversário.
Depois disso, muito ainda aconteceu... Pessoas paravam os carros para me olhar. Uma senhora puxou meus cabelos para ver se era peruca. Virei atração circense na cidade pequena. Fui vítima de preconceitos, mas derrubei todos comprovando a minha capacidade em fazer o que eu fazia antes. Voltei ao trabalho e fui muito bem recebida pelos colegas da escola e pelos alunos. Meu lugar de volta... Nas duas farmácias, meu lugar de volta. Um convite para o cursinho rival. Um convite para outra escola nova na cidade. Fiz uma outra faculdade (Química), para provar a mim mesma que podia. Fui à Angra dos Reis com cerca de 30 alunos e aprendi a mergulhar em alto mar com snorkell (jamais faria isto antes). Consegui tocar o piano muito mal, como antes eu tocava...
No dia 25 de dezembro daquele ano, saiu o laudo do neurologista: Vida normal. Todos os testes me permitiam dirigir, trabalhar, normalmente.
Um tio contou que, ao dormir, sonhou com a cirurgia e viu São José correndo em direção aos médicos e colocando a mão sob a minha cabeça. Lembrei-me imediatamente da oração da senhora "louca" e achei-a guardada nos meus pertences do hospital, que jamais havia mexido, desde que de lá eu saí. Nem lembrava mais.
Veias partidas, hematomas, fraqueza. Tudo foi superado...
Pensam que acabou???
Cerca de um mês depois, retornei à Pouso Alegre para uma tomografia. Eles verificariam se estava tudo bem.
Depois de passar por tudo que passei, de já ter feito tomografias antes, de ser feito o teste antes do exame... Tive uma rejeição ao contraste. Edema de glote, inchaço generalizado. Literalmente eu virei a "Fera" na frente do Szafir, que ficou estupefato. Quando percebi o que iria acontecer, meus conhecimentos me fizeram correr e invadir a sala do médico, e me joguei na maca e fui fazendo o diagnóstico por minha conta. Um me "atacou" com uma injeção intramuscular, enquanto o outro tentou inutilmente pegar uma veia (todas retalhadas ainda) e o medicamento ficou numa bola que virou a minha mão... Mas fui retornando ao normal lentamente e dormi o resto do dia e a noite toda... Tomografias, por favor, nunca mais...
Agora chega...
Hoje estou curada, sem remédios e muito agradecida pela chance de continuar... Tudo isto serviu para que eu crescesse e melhorasse como pessoa. Para que eu amasse mais ainda...
Obrigada aos que tiveram a paciência de me acompanhar aqui. Sinto-me muito mais leve em desabafar, contando detalhes e um dos meus muitos apuros. Postarei outros apuros depois. Mas este, com certeza, foi o maior...