terça-feira, fevereiro 28, 2006

CURTO CIRCUITO OU OS APUROS DE CLAUDINHA

(A franja ainda cortada pela metade, uma leve depressão acima das sombrancelhas. Esta é minha foto da vitória)


Os Apuros de Claudinha
Curto Circuito - Parte I


Era setembro, 2001, no terceiro dia. Havia rumores na escola de que fariam uma festa surpresa no dia do meu aniversário. Na farmácia, muito serviço, como sempre. Terminei tudo e me preparei para minha caminhada diária. O sol, escaldante, das 16:00h, não foi capaz de me fazer desistir. Fui à luta, me protegi como pude. Cheguei bem. Não sentia nada. Não estava doente...
À noite, fui me deitar mais cedo. Estava preocupada com meu filho que havia se sentido mal. Como não me sentia calma, resolvi tomar uma "arma secreta" que minha médica receitou, para relaxar e tentar dormir. Às 21:30h, um telefonema, avisando que os exames do garoto teriam que ser repetidos, havia alteração, mas nada de ruim. O nível de triglicérides muito alto, o que era de se esperar de quem comia carboidratos sem parar... Mas eu não acreditei que seria isto, entrei em pânico, minha pressão arterial subiu demais e aí... Deu tilt... Curto circuito mesmo!!!
Tive uma convulsão e muito enjôo. Depois, minha nuca começou a queimar e parecia que minha cabeça iria subir pelos ares, como um foguete. Como ela não desgrudava, a dor era insuportável. Gritava, desmaiava. Só sei disto por relatos de quem viu, porque eu não me lembro nem da dor (Ufa!!). Ao sentir mal, fui tomar um banho e chamei o Szafir que estava na cozinha. A partir da fase da nuca queimar, eu não me lembro de mais nada.
O Szafir chamou o médico.
Ana dormia, não viu nada, tinha três anos. Du, 10 anos, dormia na casa da avó e também não viu nada, ainda bem...
A rigidez da nuca e a confusão mental levaram o Dr. Eduardo a me internar na Santa Casa, mas como não melhorava, ele diagnosticou AVC hemorrágico e me mandou urgentemente para Pouso Alegre. Fui de ambulância, com minha mãe, que a tudo suportou bravamente. Meu Szafir atrás de carro, minha vida toda por um fio. O aviso do médico: É grave, muito grave. Não sabemos se ela sobreviverá à viagem, ou ao AVC... Não há muitas chances de vida...


Os Apuros de Claudinha

Curto Circuito - Parte II
- O Primeiro Milagre -
"Vida... Louca vida... Vida breve..."
Dois dias, ora consciente, ora inconsciente, mas eu não tenho lembranças. Vendo pelo lado bom, jamais completei 37 anos... Recebi a todos, conversei, mas não me lembro.
Tomografia, diagnóstico: Aneurisma cerebral hemorrágico, na carótida. Presente de aniversário.
Tenho pouquíssimas lembranças depois destes dias. Totalmente sem noção das horas. Sei que o tempo passava, pela troca de acompanhantes, pelas pessoas que iam e vinham, no que parecia um piscar de olhos meus...
Acordava num intervalo de muitas injeções e comprimidos. Um banho, um almoço, um café. Que dia seria???
Meu Szafir, tão alto, dormindo encolhido perto de mim, sem nenhum conforto. Meus cunhados, João e Wilson me surpreenderam. Nunca imaginaria que seriam companhias tão boas, tão necessárias. Todos, cunhadas, cunhados, médicos da família, revezando, num esquema, numa cidade 100km distante...
E as crianças? "Estão com sua mãe". Sosseguei. Entreguei meus pontos e meus filhos. Estariam bem.
Não podia levantar a cabeça, as pernas enfaixadas para evitar trombose, um calor insuportável...
No dia 11 de setembro, finalmente, minhas veias estavam em condições de um exame, tipo cateterismo , para estudar o local do Acidente Vascular Cerebral (AVC).
Enquanto as "Torres Gêmeas" desabavam em New York, eu estava correndo risco de vida. Para quem não sabe, quando se tem um AVC, as veias entram em espasmo e tudo pode se perder...
Os médicos, enquanto realizavam o exame, comentavam o atentado. Eu ouvia trechos e estava assimilando de maneira confusa. Em Nova York? Então, eu sofri um acidente em NY? Como? Como vim parar aqui? O que aconteceu? Onde consegui grana e tempo para viajar? Ninguém me ouvia e ninguém me respondia.
O que eles não imaginavam, aconteceu. Meu sofrido e cansado batedor deu sinais de perigo. Eu, como se assistisse ao lado da mesa, via todos correndo e um deles me machucou muito o peito, outro ajudava, enquanto uma enfermeira pressionava alternadamente o meu peito e a minha virilha. Nesta última, para estancar o sangue da incisão para o exame. Não recobrava os sentidos. E, devido aos anticoagulantes tomados, também não estancava o sangue.
Até que pensei: Mas, e as crianças? Se estou aqui, onde estão as crianças??? Estão neste mesmo acidente? Preciso achá-las! Entrei em pânico!
Imediatamente, senti uma violenta sensação de queda e acordei de sobressalto. Abri os olhos e vi os dois médicos que me machucavam se cumprimentarem e rirem para mim.
Fui para o quarto. Depois de alguns dias, tive consciência do atentado de 11 de setembro, mas não da sua gravidade.
Neste dia, Beto Guedes e amigos gravavam um cd num show especial (em homenagem aos seus 50 anos), e dedicaram-no às vítimas do atentado (Szafir me deu o cd de presente, quando fez um ano)... Ainda me lembro quando o Beto cantou na Praça Tiradentes, em 1980, para todos os aniversariantes dali, no dia do meu aniversário, "quando entrar setembro e a boa nova..."
Começou então a espera pela decisão. Seria operada, mas quando?
Já estava no hospital há 10 dias, e nenhuma chance de voltar para casa. Só a certeza de que havia sobrevivido ao AVC, sem seqüelas. O que por si só já é um milagre...
A saudade de casa, a vontade de ver os filhos... Mesmo meu Szafir traficando um celular (puxa vida, até os bandidos fazem isto, porque não eu?), e eu falando escondido com eles, não dava para matar as saudades. Eu não podia falar muito, a emoção poderia detonar a bomba que eu trazia comigo, desde que nasci...
Para Ana, eu estava fazendo um curso. Ela custou a me perdoar por eu ter saído sem dizer tchau. O Du, mais velho, compreendia tudo, sofria calado. Eu, mais ainda, aproveitava cada chance de falar com eles, pois sempre achava que poderia ser a última oportunidade de dizer que os amava...

(continua...)


Os Apuros de Claudinha

Curto Circuito - Parte III
- A hora da verdade -
O tempo se arrastava dolorosamente. Nenhuma novidade para resolver a minha vida. Eu ia me desesperando. Saudades das crianças... Manchas roxas pelos braços e pernas. Muitas injeções e veias destroçadas. Quatro injeções por dia . Não havia mais local que não doesse. Comer, só virando a cabeça de lado, não podia me levantar, nem travesseiro podia. Banho, só no leito. Me rolavam para lá e para cá. Eu colaborava e tratava a todos com alegria. O carinho, os cuidados e a CARIDADE de quem trabalhava lá, foram importantíssimos para mim. Não me esqueci de nenhum deles e nunca vou me esquecer.
Iriam mexer dentro da minha cabeça. Na região central de meu cérebro, aquele de quem sempre me orgulhei, pois funcionava direitinho... E aí? O que seria de mim??? Já imaginaram alguém atravessar toda a sua massa cerebral e mexer lá no centro de seu cérebro? Nem tentem... E eu, que sempre fui fascinada pela anatomia, principalmente pelo cérebro, imaginava... Qual a área seria lesada? A da música?(Não poderia mais tocar piano ou violão?) A da fala? A do raciocínio? Ah, não! Isso não! Rezei muito e pedi a Deus que se tivesse que perder algo, que fosse algo que não me impedisse de dar aulas. O resto, eu dava um jeito. Iria até de cadeiras de rodas...
O tempo continuava passando vagarosamente... Eu não via a hora de tudo se resolver, fosse como fosse...
Finalmente uma data! Dia 20 de setembro. No dia anterior, jejum total. Tudo pronto, despedidas e uma unção dos enfermos, que no meu tempo era chamada de extrema unção. Isso me matou sem que eu morresse... Mas, sinceramente, eu me senti bem depois. Um "dormonid", a pílula da verdade, e me deixaram totalmente "light" , sem travas na língua.
Mas, antes de sair do quarto, veio a notícia do cancelamento da cirurgia. Uma "anta parabólica circuncisfláutica apoptótica deuterótoca arrenótoca inerética" (é assim que me expresso em língua de palavrão) deu um tiro na cabeça e não morreu. Tomou meu lugar às pressas no centro cirúrgico.
Tudo bem, eu seria operada no dia 21... De tudo, o mais difícil foi o jejum. A fome é o pior dos castigos. Mas, dopada que estava, suportei bem.
A hora da verdade chegara...


Os Apuros de Claudinha

Curto Circuito - FINAL

- A Nova Chance -
Eu cheia de "dormonid", lembro-me vagamente das coisas. Mas nunca vou me esquecer do que meu Szafir falou ao meu ouvido. Da nossa despedida (meu Deus muito triste!), eu não vou relatar aqui, senão não conseguirei mais escrever.
Heroicamente, distribui meus preciosos bens. O piano para Ana, o cordão de ouro do tempo do império e o violão para o Du, o Vinícius (meu Ford Fiesta) para o Szafir vender e só. Ah! E as crianças para minha mãe, claro!
Antes da cirurgia, uma senhora muito louca (louca?), me deu uma oração de São José. Isto me fez voltar à infância, lembrar da imagem acima da cama de minha avó paterna, que há anos estava entrevada. Nunca tinha orado à ele. Naquele dia orei. Ela colocou o papel sob minha cabeça e nunca mais a vi.
Tudo correu muito bem. Fora as minhas ‘cantadas’ no "Doutor Bonitão" (gente, não é culpa minha, dormonid faz isso mesmo!), nada a me queixar. Só que sobre o tal doutor, ninguém sabia quem era, ninguém mais viu. Só eu!
A cirurgia durou das 7:30h às 16:30h. Quando saí escutei o enfermeiro me dizendo que meu marido estava me vendo através do vidro. Eu o vi chorando, sorri, e apaguei.
Acordei no outro dia cedinho na UTI, e logo que recobrei os sentidos, vi a infeliz alma de 22 anos, que penava com a cabeça destroçada, logo à frente. Disparei a falar mal e falar alto: "Eu lutando para viver e você jogando fora a sua vida? Idiota! Imbecil! " Etc, etc... Todos os meus aparelhos apitavam e os daquela pobre alma começaram a apitar também. Era a “Claudinha M. L. P. e Espetaculosa” de volta, com ajuda de uns alucinógenos, achando que podia mudar o mundo, ou dar moral à alguém, que já deveria ter se arrependido muito da besteira que fez... Bagunça geral na UTI. Veio um rapazinho (Jeto) e começou a conversar comigo, me pedindo calma. Achei melhor parar, a pobre alma já mostrava muito sofrimento. Percebi que estava praticamente nua, só com uma minúscula toalha de lavabo, de uns 20 cm cobrindo meus quadris. Cheia de fios e coisas me incomodando... As unhas ainda estavam de esmalte.
Logo de manhã, me mandaram para o quarto. Estava incrivelmente bem, corte sequinho, dreno retirado e sem febre. Todos os movimentos "funcionaram". Só não abria o olho direito. Pensei que era seqüela, mas logo percebi que era o inchaço. Quando tiraram meu "turbante" de gaze fiquei eufórica ao perceber toda a minha juba intacta! Puxa que bom! Só não percebia a cicatriz de 25cm de fora a fora na linha dos cabelos. Eu me sentia um forro de sofá todo grampeado. Puseram um zíper na minha testa.
Sozinha agora. Não podia mais acompanhantes... Só meu Szafir veio me ver rapidamente...
Na madrugada do dia 23, emergência. Não havia mais quartos e tive que dividir meu quarto com o Sr. Antônio Maria, que teve derrame cerebral e estava nas últimas. Eu fui a única que não me importei, ninguém aceitou. Na ala dos homens não havia lugar. Que mal faria?
Colocaram um biombo, não é permitido mulheres e homens no mesmo quarto. Pelas frestas, eu pude observar a agonia do ancião. Sr. Antônio Maria foi embora vagarosamente. Eu, absolutamente serena, vendo a sua face embranquecer e sua respiração ficar cada vez mais fraca. Ele saiu de manhã, coberto pelo lençol. Fiquei muito mal depois, mas agüentei! Herdei os biscoitos que a família dele deixou e aceitei com sinceridade. Serviram para acalmar minha ansiedade durante o dia. A única pessoa que estava "normal" ali era eu. Uns chorando, outros gritando, outros loucos de tudo. A neurologia é uma das alas mais pesadas de um hospital. Acho que só perde para a de câncer infantil.
Finalmente, no dia 24, Dr. Alex, meu anjo bom, (às 7:06h da manhã!) me avisou, em segredo, que eu teria alta. (Pedi à Graça (enfermeira que mais me ajudou), que avisasse ao Szafir, ligasse à cobrar, pois tinha medo que o hospital demorasse a ligar). Logo que chegou o papel de alta, meu Szafir já estava lá, e me levou embora...
Entrei no carro, o sol bateu em meu braço, fiquei atônita. O sol!!! Quanto tempo que não o via! "Olha Di, o sol no meu braço!" Ele me olhava sem entender bem se eu estava louca ou o que era...
A claridade das ruas, o cheiro de ar puro das montanhas no caminho... O verde, o céu azul... Meu Deus, como é bom estar viva!
Ao chegar, uma faixa na rua, me desejando felicidades. Meus filhos assustados com minha cara inchada. Mas desci do carro e entrei andando na casa de meus pais.
A felicidade reinava. Ana subiu na cama e ,na ânsia de ficar comigo, sentou-se em minha cabeça... Foi só grito e choro, e a coitadinha assustada fugiu e ficou escondidinha... Meu Deus!
Eu tive muita proteção... Nem meus cabelos foram raspados. Mantive minha juba, mesmo com um corte de mais de 20 cm. Nenhuma seqüela aparente. Toda a doidisse já existia antes.
Voltei ao hospital um mês depois. Procurei todos os enfermeiros e agradeci aos que estavam lá. Eu nasci de novo, no dia do meu aniversário.
Depois disso, muito ainda aconteceu... Pessoas paravam os carros para me olhar. Uma senhora puxou meus cabelos para ver se era peruca. Virei atração circense na cidade pequena. Fui vítima de preconceitos, mas derrubei todos comprovando a minha capacidade em fazer o que eu fazia antes. Voltei ao trabalho e fui muito bem recebida pelos colegas da escola e pelos alunos. Meu lugar de volta... Nas duas farmácias, meu lugar de volta. Um convite para o cursinho rival. Um convite para outra escola nova na cidade. Fiz uma outra faculdade (Química), para provar a mim mesma que podia. Fui à Angra dos Reis com cerca de 30 alunos e aprendi a mergulhar em alto mar com snorkell (jamais faria isto antes). Consegui tocar o piano muito mal, como antes eu tocava...
No dia 25 de dezembro daquele ano, saiu o laudo do neurologista: Vida normal. Todos os testes me permitiam dirigir, trabalhar, normalmente.
Um tio contou que, ao dormir, sonhou com a cirurgia e viu São José correndo em direção aos médicos e colocando a mão sob a minha cabeça. Lembrei-me imediatamente da oração da senhora "louca" e achei-a guardada nos meus pertences do hospital, que jamais havia mexido, desde que de lá eu saí. Nem lembrava mais.
Veias partidas, hematomas, fraqueza. Tudo foi superado...
Pensam que acabou???
Cerca de um mês depois, retornei à Pouso Alegre para uma tomografia. Eles verificariam se estava tudo bem.
Depois de passar por tudo que passei, de já ter feito tomografias antes, de ser feito o teste antes do exame... Tive uma rejeição ao contraste. Edema de glote, inchaço generalizado. Literalmente eu virei a "Fera" na frente do Szafir, que ficou estupefato. Quando percebi o que iria acontecer, meus conhecimentos me fizeram correr e invadir a sala do médico, e me joguei na maca e fui fazendo o diagnóstico por minha conta. Um me "atacou" com uma injeção intramuscular, enquanto o outro tentou inutilmente pegar uma veia (todas retalhadas ainda) e o medicamento ficou numa bola que virou a minha mão... Mas fui retornando ao normal lentamente e dormi o resto do dia e a noite toda... Tomografias, por favor, nunca mais...
Agora chega...
Hoje estou curada, sem remédios e muito agradecida pela chance de continuar... Tudo isto serviu para que eu crescesse e melhorasse como pessoa. Para que eu amasse mais ainda...
Obrigada aos que tiveram a paciência de me acompanhar aqui. Sinto-me muito mais leve em desabafar, contando detalhes e um dos meus muitos apuros. Postarei outros apuros depois. Mas este, com certeza, foi o maior...




quarta-feira, fevereiro 08, 2006

A Vila Rica


(Este é um conto do meu amigo o escritor carioca Antonio Carlos, marido de minha amiga Dri das Tempestades, com quem vive em eterna lua de mel. Foi um presente no ano de 2004. E uma honra muito grande ter um conto escrito só para mim, buscando minha essência, meus antepassados, meus caminhos e todas as suas pedras, assim com a magia da vida e a alma cigana de borboleta...)


Era um andarilho, sim. Mas não desses sem rumo, que norteiam a caminhada desnorteando-se por caminhos quaisquer. Farmacêutico Industrial, dizia o diploma todo amassado na mochila, junto a outro, Químico. Dera aulas também, um dia cismou ser alquimista, sonhou ser Ponce de Leon. “Vou transformar pedra-sabão em ouro e serei rico. Vou também encontrar a fonte da eterna juventude e serei eternamente jovem. E rico”. Acho que muitos sonham com isso. O andarilho passou da quimera à busca. Largou-se de tudo e pegou as estradas. Não sem rumo, já foi dito. Talvez sem prumo, mas tinha rumo. E assim chegou à Vila Rica...
Pesquisara, sabia ser ali um lugar de anfibolitos e esteaticos. Antônio Francisco Lisboa decerto não conhecia a pedra por estes nomes. Ele, por sua vez, jamais saberia esculpir obras como aquelas, mesmo que aleijado fosse. Material para fazer o ouro, ali encontraria. E, melhor, e mais: um certo pároco local, Padre Carmelo, antigo confessor de antigo amigo seu, dissera em carta que corria lenda sobre uma fonte mágica, também naquela vila. Rica vila, jovem Vila. O andarilho encheu o coração de idéias e a cabeça de emoções. Dali sairia jovem e rico...
Alojou-se em uma pousada simples, que dinheiro pouco quase nada trazia consigo. “Primeiro a riqueza”, decidiu. Indagando aqui e ali, soube de um lugar chamado Mina Velha, uma das mais antigas do lugar. “Possui quilômetros de túneis, pode-se ver os veios de ocre e malacacheta”, contaram-lhe. “E pedra-sabão? Tem nessa mina?”. “A vila é um verdadeiro queijo suíço, inúmeras minas e túneis secretos cruzam o subsolo. Procure, deve ter”. Mineiros, nem de minas eles falam muito, ainda mais a um estrangeiro de mochila nas costas. Nem atreveu-se a perguntar o caminho. Afinal, andarilho que se preza tem mais é que andar...
Bairros, muitos, enveredou-se. Cabeças, Rosário, Centro, Pilar, Antonio Dias, Barra. Ruas, muitas. Encantou-se pela rua das Flores, sorriu no Largo da Alegria, quem teria sido o Conselheiro Quintiliano? Lembrou do Rio, ao passar pela rua da Conceição e pela praça Tiradentes. Lembrou por causa dos nomes, claro. “E quanta igreja, só mesmo pelo amor de Deus”, pensava ao olhar a Matriz de Nossa Senhora do Pilar. Persignou-se diante da São Francisco de Assis, até fez um singelo pedido, já cansado de tanto andar, em frente à São José: “Onde, onde está a tal Mina Velha?”. Santos sabem das intenções humanas, presume-se. Obviamente São José não respondeu...
“O ouro que espere, vou saber da lenda, a fonte da juventude agora irei procurar”. Ninguém sabia da lenda. “Padre Carmelo? Não conheço”. Quarenta vezes perguntou, talvez tenham sido vinte e oito, dava na mesma. A resposta era igual. Vontade de ir embora, vontade de ficar velho e pobre, de pagar a estadia e meter o pé na estrada. “Vou é dar aulas, ganhar pouco, me aposentar ganhando menos ainda e fim”. Decidido, voltou à estalagem. Voltou? E como, se estava perdido, andara a esmo pela cidade, logo ele, um andarilho de rumo certo. Viu um parque de diversões vazio, abandonado. Melancolia bateu forte. Sentou-se em um banco desses que sempre tem nos parques, onde se come maçã do amor, algodão-doce e se beija na boca. Não fez nada disso, o nosso desgarrado desesperançado. Desiludido, dormiu. Químico, farmacêutico industrial e usuário de sonhos...
Acordou com as luzes do parque refletindo sons e entoando cores. O carrossel girava girafas zebras, elefantes e, obviamente, cavalos. Uma mulher, linda, cavalgava voltas e voltas, cantando em castelhano. Ficou tonto só de ouvir, ficou tonto em vê-la girar e girar. Aproximou-se, não havia ninguém. O brinquedo quedava silente. A roda-gigante, porém, subia e descia uma menina de seis anos, não mais. Que usava as mesmas roupas e cantava a mesma canção. Correu a ela e, de novo, ilusão. “Estou tendo visões de cansaço e fome, desgosto e tristeza”. Deu as costas ao parque e partiria, se não o houvessem chamado...
“O que procuras?”. Era a mulher quem falava. “Primeiro quis ouro, depois quis a eterna juventude. Nada encontrei, nada mais procuro”. “E para que buscavas estas coisas? “. Agora, a menina. Pasmo, percebeu como eram parecidas. Perplexo, percebeu que tinham a mesma voz. “Queria ser jovem e rico, como jamais fui”. “Nunca antes brincaste em um parque como este?”. Nem preciso mais identificar quem falava. Não sei. “Nunca”. “Pois venha conosco, venha alegrarse”. E ainda mais essa, espanhol. Pragmatismo, sua hora chegou. Já que ali estava, deixou-se levar...
Rodopiou no carrossel, viu a Vila Velha iluminada ao longe, do alto da roda, bateu no carrinho das duas com a alegria de quem nunca soube dirigir. Comeu, enfim, o algodão-doce cor de rosa e sentiu uma antiga cárie incomodar-se com a maçã do amor. Não beijou, nem pensou nisso...
“Pronto, és mozo, e noche y día o serás”. “Certamente o serei”. “Ainda queres prosperidad, tesoros?”. “Se puder ter, quero, ainda”. Magicamente, mulher e menina fundiram-se numa só, e não eram mais nem menina, nem mulher. Uma borboleta flanava em frente a seus pasmos olhos. “Onde estão vocês?”. Sentiu medo, o andarilho. Talvez fosse a lenda, aquela sobre a qual ninguém quis lhe falar. Sairia dali louco, ou talvez nem dali louco saísse. “Estamos aqui, diante de ti, somos alvéolo e palomilla, somos a riqueza de podermos ser o que quisermos ser. Somos libres para soñar”. E voaram para longe, subiram como Ícaro, não ao sol, mas à lua. A luna...
Facilmente o homem, jovem e rico, voltou à estalagem...
“Encontrou o que queria, amigo?”. “Sim, encontrei”. “Achou então o parque e a borboleta, decerto”. “Se sabias disso, por que não me contaste tão logo cheguei?”. “Há coisas, mineiramente falando, que um homem deve descobrir sozinho”. Não discutiu, feliz, cansado e faminto que estava, e o homem, mineiramente calado agora, estava certo. “Me traga uma dessas comidas típicas de vocês, por favor”. Esperou que viesse logo o tutu a mineira, quem sabe mesmo um assado de ervilhas com batatas. Pediria depois um licor de anis e ainda biscoitos de fubá de canjica. Empanturrar-se-ia, dormiria e ao nascer do sol, tomaria seu rumo...
O homem lhe trouxe arroz a la cazuela. Gazpacho e chorizo. Vinho e chocoruelas. Ele nem notou, comeu tudo com gosto de homem rico, de homem jovem. Ao longe, um piano cantava versos assim: “Por tantas vezes eu andei mentindo, só por não poder te ver. Te amo espanhola, te amo espanhola. Se for chorar, te amo sempre assim. Sempre assim...

(Antonio Carlos)