quinta-feira, outubro 12, 2006

Memórias de Borboleta VI

Aqui estão meus apuros e paro por aqui, eu espero. Minhas letras são constantemente atualizadas no Transmimentos de PensAções. Obrigada pela visita!


(A franja ainda cortada pela metade, uma leve depressão acima das sobrancelhas. Esta é minha foto da vitória)
Existem aqui alguns erros de português, mas deixei que ficassem para guardar o meu momento. Este texto foi escrito durante a minha recuperação física e psicológica.

Os Apuros de Claudinha Curto Circuito - Parte I
Era setembro, 2001, no terceiro dia. Havia rumores na escola de que fariam uma festa surpresa no dia do meu aniversário. Na farmácia, muito serviço, como sempre. Terminei tudo e me preparei para minha caminhada diária. O sol, escaldante, das 16:00h, não foi capaz de me fazer desistir. Fui à luta, me protegi como pude. Cheguei bem. Não sentia nada. Não estava doente...À noite, fui me deitar mais cedo. Estava preocupada com meu filho que havia se sentido mal. Como não me sentia calma, resolvi tomar uma "arma secreta" que minha médica receitou, para relaxar e tentar dormir. Às 21:30h, um telefonema, avisando que os exames do garoto teriam que ser repetidos, havia alteração, mas nada de ruim. O nível de triglicérides muito alto, o que era de se esperar de quem comia carboidratos sem parar... Mas eu não acreditei que seria isto, entrei em pânico, minha pressão arterial subiu demais e aí... Deu tilt... Curto circuito mesmo!!!Tive uma convulsão e muito enjôo. Depois, minha nuca começou a queimar e parecia que minha cabeça iria subir pelos ares, como um foguete. Como ela não desgrudava, a dor era insuportável. Gritava, desmaiava. Só sei disto por relatos de quem viu, porque eu não me lembro nem da dor (Ufa!!). Ao sentir mal, fui tomar um banho e chamei o Szafir que estava na cozinha. A partir da fase da nuca queimar, eu não me lembro de mais nada.O Szafir chamou o médico.Ana dormia, não viu nada, tinha três anos. Du, 10 anos, dormia na casa da avó e também não viu nada, ainda bem...A rigidez da nuca e a confusão mental levaram o Dr. Eduardo a me internar na Santa Casa, mas como não melhorava, ele diagnosticou AVC hemorrágico e me mandou urgentemente para Pouso Alegre. Fui de ambulância, com minha mãe, que a tudo suportou bravamente. Meu Szafir atrás de carro, minha vida toda por um fio. O aviso do médico: É grave, muito grave. Não sabemos se ela sobreviverá à viagem, ou ao AVC... Não há muitas chances de vida...
Os Apuros de Claudinha Curto Circuito - Parte II-
O Primeiro Milagre -"Vida... Louca vida... Vida breve...
"Dois dias, ora consciente, ora inconsciente, mas eu não tenho lembranças. Vendo pelo lado bom, jamais completei 37 anos... Recebi a todos, conversei, mas não me lembro.Tomografia, diagnóstico: Aneurisma cerebral hemorrágico, na carótida. Presente de aniversário.Tenho pouquíssimas lembranças depois destes dias. Totalmente sem noção das horas. Sei que o tempo passava, pela troca de acompanhantes, pelas pessoas que iam e vinham, no que parecia um piscar de olhos meus...Acordava num intervalo de muitas injeções e comprimidos. Um banho, um almoço, um café. Que dia seria???Meu Szafir, tão alto, dormindo encolhido perto de mim, sem nenhum conforto. Meus cunhados, João e Wilson me surpreenderam. Nunca imaginaria que seriam companhias tão boas, tão necessárias. Todos, cunhadas, cunhados, médicos da família, revezando, num esquema, numa cidade 100km distante...E as crianças? "Estão com sua mãe". Sosseguei. Entreguei meus pontos e meus filhos. Estariam bem.Não podia levantar a cabeça, as pernas enfaixadas para evitar trombose, um calor insuportável...No dia 11 de setembro, finalmente, minhas veias estavam em condições de um exame, tipo cateterismo , para estudar o local do Acidente Vascular Cerebral (AVC).Enquanto as "Torres Gêmeas" desabavam em New York, eu estava correndo risco de vida. Para quem não sabe, quando se tem um AVC, as veias entram em espasmo e tudo pode se perder...Os médicos, enquanto realizavam o exame, comentavam o atentado. Eu ouvia trechos e estava assimilando de maneira confusa. Em Nova York? Então, eu sofri um acidente em NY? Como? Como vim parar aqui? O que aconteceu? Onde consegui grana e tempo para viajar? Ninguém me ouvia e ninguém me respondia.O que eles não imaginavam, aconteceu. Meu sofrido e cansado batedor deu sinais de perigo. Eu, como se assistisse ao lado da mesa, via todos correndo e um deles me machucou muito o peito, outro ajudava, enquanto uma enfermeira pressionava alternadamente o meu peito e a minha virilha. Nesta última, para estancar o sangue da incisão para o exame. Não recobrava os sentidos. E, devido aos anticoagulantes tomados, também não estancava o sangue.Até que pensei: Mas, e as crianças? Se estou aqui, onde estão as crianças??? Estão neste mesmo acidente? Preciso achá-las! Entrei em pânico!Imediatamente, senti uma violenta sensação de queda e acordei de sobressalto. Abri os olhos e vi os dois médicos que me machucavam se cumprimentarem e rirem para mim.Fui para o quarto. Depois de alguns dias, tive consciência do atentado de 11 de setembro, mas não da sua gravidade.Neste dia, Beto Guedes e amigos gravavam um cd num show especial (em homenagem aos seus 50 anos), e dedicaram-no às vítimas do atentado (Szafir me deu o cd de presente, quando fez um ano)... Ainda me lembro quando o Beto cantou na Praça Tiradentes, em 1980, para todos os aniversariantes dali, no dia do meu aniversário, "quando entrar setembro e a boa nova..."Começou então a espera pela decisão. Seria operada, mas quando?Já estava no hospital há 10 dias, e nenhuma chance de voltar para casa. Só a certeza de que havia sobrevivido ao AVC, sem seqüelas. O que por si só já é um milagre...A saudade de casa, a vontade de ver os filhos... Mesmo meu Szafir traficando um celular (puxa vida, até os bandidos fazem isto, porque não eu?), e eu falando escondido com eles, não dava para matar as saudades. Eu não podia falar muito, a emoção poderia detonar a bomba que eu trazia comigo, desde que nasci...Para Ana, eu estava fazendo um curso. Ela custou a me perdoar por eu ter saído sem dizer tchau. O Du, mais velho, compreendia tudo, sofria calado. Eu, mais ainda, aproveitava cada chance de falar com eles, pois sempre achava que poderia ser a última oportunidade de dizer que os amava...(continua...)
Os Apuros de Claudinha Curto Circuito - Parte III
- A hora da verdade -
O tempo se arrastava dolorosamente. Nenhuma novidade para resolver a minha vida. Eu ia me desesperando. Saudades das crianças... Manchas roxas pelos braços e pernas. Muitas injeções e veias destroçadas. Quatro injeções por dia . Não havia mais local que não doesse. Comer, só virando a cabeça de lado, não podia me levantar, nem travesseiro podia. Banho, só no leito. Me rolavam para lá e para cá. Eu colaborava e tratava a todos com alegria. O carinho, os cuidados e a CARIDADE de quem trabalhava lá, foram importantíssimos para mim. Não me esqueci de nenhum deles e nunca vou me esquecer.Iriam mexer dentro da minha cabeça. Na região central de meu cérebro, aquele de quem sempre me orgulhei, pois funcionava direitinho... E aí? O que seria de mim??? Já imaginaram alguém atravessar toda a sua massa cerebral e mexer lá no centro de seu cérebro? Nem tentem... E eu, que sempre fui fascinada pela anatomia, principalmente pelo cérebro, imaginava... Qual a área seria lesada? A da música?(Não poderia mais tocar piano ou violão?) A da fala? A do raciocínio? Ah, não! Isso não! Rezei muito e pedi a Deus que se tivesse que perder algo, que fosse algo que não me impedisse de dar aulas. O resto, eu dava um jeito. Iria até de cadeiras de rodas...O tempo continuava passando vagarosamente... Eu não via a hora de tudo se resolver, fosse como fosse...Finalmente uma data! Dia 20 de setembro. No dia anterior, jejum total. Tudo pronto, despedidas e uma unção dos enfermos, que no meu tempo era chamada de extrema unção. Isso me matou sem que eu morresse... Mas, sinceramente, eu me senti bem depois. Um "dormonid", a pílula da verdade, e me deixaram totalmente "light" , sem travas na língua.Mas, antes de sair do quarto, veio a notícia do cancelamento da cirurgia. Uma "anta parabólica circuncisfláutica apoptótica deuterótoca arrenótoca inerética" (é assim que me expresso em língua de palavrão) deu um tiro na cabeça e não morreu. Tomou meu lugar às pressas no centro cirúrgico.Tudo bem, eu seria operada no dia 21... De tudo, o mais difícil foi o jejum. A fome é o pior dos castigos. Mas, dopada que estava, suportei bem.A hora da verdade chegara...
Os Apuros de Claudinha Curto Circuito - FINAL
- A Nova Chance -
Eu cheia de "dormonid", lembro-me vagamente das coisas. Mas nunca vou me esquecer do que meu Szafir falou ao meu ouvido. Da nossa despedida (meu Deus muito triste!), eu não vou relatar aqui, senão não conseguirei mais escrever.Heroicamente, distribui meus preciosos bens. O piano para Ana, o cordão de ouro do tempo do império e o violão para o Du, o Vinícius (meu Ford Fiesta) para o Szafir vender e só. Ah! E as crianças para minha mãe, claro!Antes da cirurgia, uma senhora muito louca (louca?), me deu uma oração de São José. Isto me fez voltar à infância, lembrar da imagem acima da cama de minha avó paterna, que há anos estava entrevada. Nunca tinha orado à ele. Naquele dia orei. Ela colocou o papel sob minha cabeça e nunca mais a vi.Tudo correu muito bem. Fora as minhas ‘cantadas’ no "Doutor Bonitão" (gente, não é culpa minha, dormonid faz isso mesmo!), nada a me queixar. Só que sobre o tal doutor, ninguém sabia quem era, ninguém mais viu. Só eu!A cirurgia durou das 7:30h às 16:30h. Quando saí escutei o enfermeiro me dizendo que meu marido estava me vendo através do vidro. Eu o vi chorando, sorri, e apaguei.Acordei no outro dia cedinho na UTI, e logo que recobrei os sentidos, vi a infeliz alma de 22 anos, que penava com a cabeça destroçada, logo à frente. Disparei a falar mal e falar alto: "Eu lutando para viver e você jogando fora a sua vida? Idiota! Imbecil! " Etc, etc... Todos os meus aparelhos apitavam e os daquela pobre alma começaram a apitar também. Era a “Claudinha M. L. P. e Espetaculosa” de volta, com ajuda de uns alucinógenos, achando que podia mudar o mundo, ou dar moral à alguém, que já deveria ter se arrependido muito da besteira que fez... Bagunça geral na UTI. Veio um rapazinho (Jeto) e começou a conversar comigo, me pedindo calma. Achei melhor parar, a pobre alma já mostrava muito sofrimento. Percebi que estava praticamente nua, só com uma minúscula toalha de lavabo, de uns 20 cm cobrindo meus quadris. Cheia de fios e coisas me incomodando... As unhas ainda estavam de esmalte.Logo de manhã, me mandaram para o quarto. Estava incrivelmente bem, corte sequinho, dreno retirado e sem febre. Todos os movimentos "funcionaram". Só não abria o olho direito. Pensei que era seqüela, mas logo percebi que era o inchaço. Quando tiraram meu "turbante" de gaze fiquei eufórica ao perceber toda a minha juba intacta! Puxa que bom! Só não percebia a cicatriz de 25cm de fora a fora na linha dos cabelos. Eu me sentia um forro de sofá todo grampeado. Puseram um zíper na minha testa.Sozinha agora. Não podia mais acompanhantes... Só meu Szafir veio me ver rapidamente...Na madrugada do dia 23, emergência. Não havia mais quartos e tive que dividir meu quarto com o Sr. Antônio Maria, que teve derrame cerebral e estava nas últimas. Eu fui a única que não me importei, ninguém aceitou. Na ala dos homens não havia lugar. Que mal faria?Colocaram um biombo, não é permitido mulheres e homens no mesmo quarto. Pelas frestas, eu pude observar a agonia do ancião. Sr. Antônio Maria foi embora vagarosamente. Eu, absolutamente serena, vendo a sua face embranquecer e sua respiração ficar cada vez mais fraca. Ele saiu de manhã, coberto pelo lençol. Fiquei muito mal depois, mas agüentei! Herdei os biscoitos que a família dele deixou e aceitei com sinceridade. Serviram para acalmar minha ansiedade durante o dia. A única pessoa que estava "normal" ali era eu. Uns chorando, outros gritando, outros loucos de tudo. A neurologia é uma das alas mais pesadas de um hospital. Acho que só perde para a de câncer infantil.Finalmente, no dia 24, Dr. Alex, meu anjo bom, (às 7:06h da manhã!) me avisou, em segredo, que eu teria alta. (Pedi à Graça (enfermeira que mais me ajudou), que avisasse ao Szafir, ligasse à cobrar, pois tinha medo que o hospital demorasse a ligar). Logo que chegou o papel de alta, meu Szafir já estava lá, e me levou embora...Entrei no carro, o sol bateu em meu braço, fiquei atônita. O sol!!! Quanto tempo que não o via! "Olha Di, o sol no meu braço!" Ele me olhava sem entender bem se eu estava louca ou o que era...A claridade das ruas, o cheiro de ar puro das montanhas no caminho... O verde, o céu azul... Meu Deus, como é bom estar viva!Ao chegar, uma faixa na rua, me desejando felicidades. Meus filhos assustados com minha cara inchada. Mas desci do carro e entrei andando na casa de meus pais.A felicidade reinava. Ana subiu na cama e ,na ânsia de ficar comigo, sentou-se em minha cabeça... Foi só grito e choro, e a coitadinha assustada fugiu e ficou escondidinha... Meu Deus!Eu tive muita proteção... Nem meus cabelos foram raspados. Mantive minha juba, mesmo com um corte de mais de 20 cm. Nenhuma seqüela aparente. Toda a doidisse já existia antes.Voltei ao hospital um mês depois. Procurei todos os enfermeiros e agradeci aos que estavam lá. Eu nasci de novo, no dia do meu aniversário.Depois disso, muito ainda aconteceu... Pessoas paravam os carros para me olhar. Uma senhora puxou meus cabelos para ver se era peruca. Virei atração circense na cidade pequena. Fui vítima de preconceitos, mas derrubei todos comprovando a minha capacidade em fazer o que eu fazia antes. Voltei ao trabalho e fui muito bem recebida pelos colegas da escola e pelos alunos. Meu lugar de volta... Nas duas farmácias, meu lugar de volta. Um convite para o cursinho rival. Um convite para outra escola nova na cidade. Fiz uma outra faculdade (Química), para provar a mim mesma que podia. Fui à Angra dos Reis com cerca de 30 alunos e aprendi a mergulhar em alto mar com snorkell (jamais faria isto antes). Consegui tocar o piano muito mal, como antes eu tocava...No dia 25 de dezembro daquele ano, saiu o laudo do neurologista: Vida normal. Todos os testes me permitiam dirigir, trabalhar, normalmente.Um tio contou que, ao dormir, sonhou com a cirurgia e viu São José correndo em direção aos médicos e colocando a mão sob a minha cabeça. Lembrei-me imediatamente da oração da senhora "louca" e achei-a guardada nos meus pertences do hospital, que jamais havia mexido, desde que de lá eu saí. Nem lembrava mais.Veias partidas, hematomas, fraqueza. Tudo foi superado...Pensam que acabou???Cerca de um mês depois, retornei à Pouso Alegre para uma tomografia. Eles verificariam se estava tudo bem.Depois de passar por tudo que passei, de já ter feito tomografias antes, de ser feito o teste antes do exame... Tive uma rejeição ao contraste. Edema de glote, inchaço generalizado. Literalmente eu virei a "Fera" na frente do Szafir, que ficou estupefato. Quando percebi o que iria acontecer, meus conhecimentos me fizeram correr e invadir a sala do médico, e me joguei na maca e fui fazendo o diagnóstico por minha conta. Um me "atacou" com uma injeção intramuscular, enquanto o outro tentou inutilmente pegar uma veia (todas retalhadas ainda) e o medicamento ficou numa bola que virou a minha mão... Mas fui retornando ao normal lentamente e dormi o resto do dia e a noite toda... Tomografias, por favor, nunca mais...Agora chega...Hoje estou curada, sem remédios e muito agradecida pela chance de continuar... Tudo isto serviu para que eu crescesse e melhorasse como pessoa. Para que eu amasse mais ainda...Obrigada aos que tiveram a paciência de me acompanhar aqui. Sinto-me muito mais leve em desabafar, contando detalhes e um dos meus muitos apuros. Postarei outros apuros depois. Mas este, com certeza, foi o maior...

segunda-feira, outubro 02, 2006

Memórias de Borboleta V

Os Apuros de Claudinha
O Acidente

Fevereiro de 1990.
Era meu primeiro carro. Um fusca amarelo com teto solar. Chegara da reforma há apenas uma semana e estava brilhando feito ouro.
Eu estava casada há apenas dois meses e resolvemos passar o final de semana na cidade que meus pais moravam. Mas na hora de sair, o carro (o único objeto meu que nunca teve nome) mostrou problemas nos freios. Meu Szafir tentou me convencer a não ir, mas eu insisti. E ele motorista exímio que sempre foi, controlou o carro com os pulsos firmes e viajamos mais de 200 km e tudo correu bem naquele final de semana. O risco foi negligenciado pelos meus vinte e cinco anos (que, aliás, mantenho até hoje) e a cabeça de vento.

Na segunda-feira, o carro foi para o mecânico para consertar os freios e assim, na terça-feira, dia 6 de fevereiro de 1990, eu pude pegar meu carrinho para ir trabalhar em uma indústria farmacêutica que fica há uns quarenta quilômetros daqui.

Naquele dia, o Szafir precisaria do carro, então, iria comigo e voltaria com ele. Depois iria me buscar. Eram 5:30h da ”madrugada”, horário de verão, e chovia insistentemente, aquela chuvinha mansa que só é boa para as plantas e para dormir.
Eu peguei a direção, e o Szafir foi dormindo no banco do co-piloto.
Logo no início da viagem, já no estado de São Paulo, senti o volante do carro girar sem controle. Justo numa reta e numa descida, ele girava, parecia sem contato com as rodas. Eu, assustada, me descontrolei e pisei violentamente nos freios. Estes, super bem regulados, travaram as rodas e o fusca começou a capotar. Acho que foram umas cinco voltas, morro abaixo. Uma granja à esquerda e um precipício com rio à direita.
Lembro-me do painel amarelo do carro começar a rodar, o s braços longos do Szafir esticados para frente e a pista escura aparecer em meus olhos, depois tudo foi clareando e ficou ofuscante. Não vi mais nada.
Eu sentia uma felicidade imensa, uma sensação de paz, nenhuma dor, e estava numa queda infinita. Comecei a pensar, acho que estou caindo da montanha e vou parar no rio, mas o chão nunca chegava, eu apenas caía, caía, caía.
Finalmente, senti o chão e um barulho esquisito em minhas costas, algo a quebrar. Levantei-me bruscamente e vi que estava no escuro, mas e o clarão? Estava cheia de ovos, roupa rasgada e procurava o Szafir que me apareceu com o rosto coberto de sangue. Eu ignorei o sangue, era como se não fosse com ele. Eu briguei com ele, queria que encontrasse minha bolsa, talão de cheques e batom novo. Não via o carro, não via meu corpo como estava, eu queria sair daquele mato, tenho horror de insetos e outros bichos que poderiam estar ali. E ainda mandei que não falasse nada, eu capotei e nem venha me falar nisto, eu acabei com meu carrinho!
A adrenalina ainda me fez pedir carona no asfalto, mas ninguém parava. Somente quando o dia clareou, um senhor com uma Pampa totalmente carregada aceitou me levar à cidade se eu fosse em cima das caixas. Eu fui, precisava chamar alguém. E ainda deixei o Szafir tomando conta do carro. Eu não tinha nenhuma consciência da gravidade e do que acontecera, eu queria sair dali.
Cheguei à cidade, chamei meu cunhado que é mecânico e voltamos para o local do acidente. O carro dele estava consertando, pedimos emprestado o carro de outro cunhado, que demorou a trazer. Na ida, ainda paramos duas vezes pois o carro tinha um defeito. Meu Deus! Eu queria que acabasse aquilo!
Quando lá chegamos, como que se tivesse levado um balde de água fria, eu lembrei que o Szafir estava sangrando, que estava sozinho e que mal respirava. Fomos socorridos e trazidos para o hospital de Jacu city.
Eu somente acompanhava a maca em que ele estava e pedia que me perdoasse. Ele voou do carro e bateu de frente a uma árvore, cortando a testa. Depois que lhe deram os pontos, ele passou a ter mais dificuldades respiratórias e precisou ser removido. Um dos médicos, amigo nosso, me passou o olho e largou o que fazia. Me levou para outra sala quase carregada, eu ainda estava de pé ajudando a socorrer. Me obrigou a sentar e disse que estava tudo ótimo e que o aparelho de raio x havia quebrado. Eles o levariam para cidades vizinhas para poder tirar uma chapa. Eu acreditei na mentira e relaxei. Aí desmaiei.
Szafir teve uma vértebra amassada e isto atingiu o centro respiratório, a coisa era séria e ele ainda corria o risco de ficar paralítico.
Eu tinha um pequeno pedaço de brita enfiado na sola do pé, sangrava em bicas e não percebia. Minha perna esquerda foi amassada, estava muito machucada e estourando na calça jeans que era bem larga. Eu tinha hematomas no corpo todo, machuquei bastante a coluna e minha cabeça tinha cinco enormes galos, que me transformaram no verdadeiro ET do Sul de Minas.
Fui medicada e passei vários dias toda roxa e com muitas, mas muitas dores. Minha coluna dói até hoje. O Szafir ficou alguns dias no hospital, longe de mim, teve que usar colete de aço por alguns meses, mas se recuperou bem.
Eu só fui conseguir olhar para o carro, dois anos depois. Ele virou ferro velho no fundo de um quintal da família.
Passado um ano, eu já estava grávida de meu primeiro filho, e tive que responder um processo para uma juíza maluca, famosa na região por suas excentricidades. Fui condenada por tentativa de homicídio culposo e minha pena, três meses de detenção, ou serviço comunitário, em pleno carnaval. Além de perder a carteira de motorista. Tudo porque falei a verdade, eu não sei o que aconteceu. Se tivesse mentido e falado que um simples farol me tirou a visão, nada disto teria acontecido. Não houve perícia, eu não bati com ninguém e o carro era meu. Incompetência!
Paguei minha pena em dinheiro, e tive que entrar num fusca novamente para tirar outra carteira de habilitação. Entrei, passei no exame e evito sempre que posso os fuscas.
Por sorte (sorte?), o carro foi para o lado esquerdo, onde havia uma granja. Eu caí em ninhos cheios de ovos, que amorteceram a queda e protegeram meu pescoço. Mais uma vez a mão de Deus me amparou na hora certa...
E de mais um apuro eu escapei...