quarta-feira, fevereiro 08, 2006

A Vila Rica


(Este é um conto do meu amigo o escritor carioca Antonio Carlos, marido de minha amiga Dri das Tempestades, com quem vive em eterna lua de mel. Foi um presente no ano de 2004. E uma honra muito grande ter um conto escrito só para mim, buscando minha essência, meus antepassados, meus caminhos e todas as suas pedras, assim com a magia da vida e a alma cigana de borboleta...)


Era um andarilho, sim. Mas não desses sem rumo, que norteiam a caminhada desnorteando-se por caminhos quaisquer. Farmacêutico Industrial, dizia o diploma todo amassado na mochila, junto a outro, Químico. Dera aulas também, um dia cismou ser alquimista, sonhou ser Ponce de Leon. “Vou transformar pedra-sabão em ouro e serei rico. Vou também encontrar a fonte da eterna juventude e serei eternamente jovem. E rico”. Acho que muitos sonham com isso. O andarilho passou da quimera à busca. Largou-se de tudo e pegou as estradas. Não sem rumo, já foi dito. Talvez sem prumo, mas tinha rumo. E assim chegou à Vila Rica...
Pesquisara, sabia ser ali um lugar de anfibolitos e esteaticos. Antônio Francisco Lisboa decerto não conhecia a pedra por estes nomes. Ele, por sua vez, jamais saberia esculpir obras como aquelas, mesmo que aleijado fosse. Material para fazer o ouro, ali encontraria. E, melhor, e mais: um certo pároco local, Padre Carmelo, antigo confessor de antigo amigo seu, dissera em carta que corria lenda sobre uma fonte mágica, também naquela vila. Rica vila, jovem Vila. O andarilho encheu o coração de idéias e a cabeça de emoções. Dali sairia jovem e rico...
Alojou-se em uma pousada simples, que dinheiro pouco quase nada trazia consigo. “Primeiro a riqueza”, decidiu. Indagando aqui e ali, soube de um lugar chamado Mina Velha, uma das mais antigas do lugar. “Possui quilômetros de túneis, pode-se ver os veios de ocre e malacacheta”, contaram-lhe. “E pedra-sabão? Tem nessa mina?”. “A vila é um verdadeiro queijo suíço, inúmeras minas e túneis secretos cruzam o subsolo. Procure, deve ter”. Mineiros, nem de minas eles falam muito, ainda mais a um estrangeiro de mochila nas costas. Nem atreveu-se a perguntar o caminho. Afinal, andarilho que se preza tem mais é que andar...
Bairros, muitos, enveredou-se. Cabeças, Rosário, Centro, Pilar, Antonio Dias, Barra. Ruas, muitas. Encantou-se pela rua das Flores, sorriu no Largo da Alegria, quem teria sido o Conselheiro Quintiliano? Lembrou do Rio, ao passar pela rua da Conceição e pela praça Tiradentes. Lembrou por causa dos nomes, claro. “E quanta igreja, só mesmo pelo amor de Deus”, pensava ao olhar a Matriz de Nossa Senhora do Pilar. Persignou-se diante da São Francisco de Assis, até fez um singelo pedido, já cansado de tanto andar, em frente à São José: “Onde, onde está a tal Mina Velha?”. Santos sabem das intenções humanas, presume-se. Obviamente São José não respondeu...
“O ouro que espere, vou saber da lenda, a fonte da juventude agora irei procurar”. Ninguém sabia da lenda. “Padre Carmelo? Não conheço”. Quarenta vezes perguntou, talvez tenham sido vinte e oito, dava na mesma. A resposta era igual. Vontade de ir embora, vontade de ficar velho e pobre, de pagar a estadia e meter o pé na estrada. “Vou é dar aulas, ganhar pouco, me aposentar ganhando menos ainda e fim”. Decidido, voltou à estalagem. Voltou? E como, se estava perdido, andara a esmo pela cidade, logo ele, um andarilho de rumo certo. Viu um parque de diversões vazio, abandonado. Melancolia bateu forte. Sentou-se em um banco desses que sempre tem nos parques, onde se come maçã do amor, algodão-doce e se beija na boca. Não fez nada disso, o nosso desgarrado desesperançado. Desiludido, dormiu. Químico, farmacêutico industrial e usuário de sonhos...
Acordou com as luzes do parque refletindo sons e entoando cores. O carrossel girava girafas zebras, elefantes e, obviamente, cavalos. Uma mulher, linda, cavalgava voltas e voltas, cantando em castelhano. Ficou tonto só de ouvir, ficou tonto em vê-la girar e girar. Aproximou-se, não havia ninguém. O brinquedo quedava silente. A roda-gigante, porém, subia e descia uma menina de seis anos, não mais. Que usava as mesmas roupas e cantava a mesma canção. Correu a ela e, de novo, ilusão. “Estou tendo visões de cansaço e fome, desgosto e tristeza”. Deu as costas ao parque e partiria, se não o houvessem chamado...
“O que procuras?”. Era a mulher quem falava. “Primeiro quis ouro, depois quis a eterna juventude. Nada encontrei, nada mais procuro”. “E para que buscavas estas coisas? “. Agora, a menina. Pasmo, percebeu como eram parecidas. Perplexo, percebeu que tinham a mesma voz. “Queria ser jovem e rico, como jamais fui”. “Nunca antes brincaste em um parque como este?”. Nem preciso mais identificar quem falava. Não sei. “Nunca”. “Pois venha conosco, venha alegrarse”. E ainda mais essa, espanhol. Pragmatismo, sua hora chegou. Já que ali estava, deixou-se levar...
Rodopiou no carrossel, viu a Vila Velha iluminada ao longe, do alto da roda, bateu no carrinho das duas com a alegria de quem nunca soube dirigir. Comeu, enfim, o algodão-doce cor de rosa e sentiu uma antiga cárie incomodar-se com a maçã do amor. Não beijou, nem pensou nisso...
“Pronto, és mozo, e noche y día o serás”. “Certamente o serei”. “Ainda queres prosperidad, tesoros?”. “Se puder ter, quero, ainda”. Magicamente, mulher e menina fundiram-se numa só, e não eram mais nem menina, nem mulher. Uma borboleta flanava em frente a seus pasmos olhos. “Onde estão vocês?”. Sentiu medo, o andarilho. Talvez fosse a lenda, aquela sobre a qual ninguém quis lhe falar. Sairia dali louco, ou talvez nem dali louco saísse. “Estamos aqui, diante de ti, somos alvéolo e palomilla, somos a riqueza de podermos ser o que quisermos ser. Somos libres para soñar”. E voaram para longe, subiram como Ícaro, não ao sol, mas à lua. A luna...
Facilmente o homem, jovem e rico, voltou à estalagem...
“Encontrou o que queria, amigo?”. “Sim, encontrei”. “Achou então o parque e a borboleta, decerto”. “Se sabias disso, por que não me contaste tão logo cheguei?”. “Há coisas, mineiramente falando, que um homem deve descobrir sozinho”. Não discutiu, feliz, cansado e faminto que estava, e o homem, mineiramente calado agora, estava certo. “Me traga uma dessas comidas típicas de vocês, por favor”. Esperou que viesse logo o tutu a mineira, quem sabe mesmo um assado de ervilhas com batatas. Pediria depois um licor de anis e ainda biscoitos de fubá de canjica. Empanturrar-se-ia, dormiria e ao nascer do sol, tomaria seu rumo...
O homem lhe trouxe arroz a la cazuela. Gazpacho e chorizo. Vinho e chocoruelas. Ele nem notou, comeu tudo com gosto de homem rico, de homem jovem. Ao longe, um piano cantava versos assim: “Por tantas vezes eu andei mentindo, só por não poder te ver. Te amo espanhola, te amo espanhola. Se for chorar, te amo sempre assim. Sempre assim...

(Antonio Carlos)

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